CFM e ABP publicam nota baseada em mentiras contra a descriminalização da maconha

Fotografia mostra a inflorescência apical de uma planta de cannabis, onde pode-se ver  seus tricomas alaranjados e os tricomas brancos, cobrindo os cálices e folhas, além da folhagem serrilhada, e um fundo escuro. Crédito: jess abtu / Vecteezy.

O Conselho Federal de Medicina e a Associação Brasileira de Psiquiatria não podem ver uma vergonha que já querem passar, pelo menos quando o assunto é cannabis e política de drogas

Em uma nota pública divulgada na quarta-feira (16), o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), mais uma vez, espalharam mentiras sobre a maconha e desdenharam da ciência.

O texto, que mais parece um trecho retirado do manual da Inquisição, começa dizendo que as entidades “reafirmam posicionamento contrário à descriminalização da maconha no país” e que “medidas que liberem ou flexibilizem o uso de drogas podem resultar no aumento do consumo, no comprometimento da saúde (de indivíduos e pública) e no fortalecimento do narcotráfico”.

Para desbancar esse primeiro bloco de desinformação da nota, existem vários estudos mostrando como a legalização (onde não somente o uso, como também a produção e o comércio são descriminalizados e regulamentados) da maconha não faz aumentar o consumo — muito pelo contrário, o uso entre jovens e adolescentes está diminuindo após a mudança de política —, além proteger a saúde pública e enfraquecer o mercado ilícito.

No Uruguai, onde o cultivo de maconha para consumo adulto é permitido há dez anos e a dispensação da droga em farmácias para uso social já ocorre desde 2017, pesquisas realizadas periodicamente pelo Observatório Uruguaio de Drogas (OUD) revelam que a tendência de aumento do uso observado desde 2001 não se alterou após a regulamentação. Os estudos também mostram que a idade de início do consumo aumentou: em 2011 era de 18,3 anos, enquanto em 2018 (cinco anos após a promulgação da lei) passou para 20,1 anos.

E, diferente de países como o Brasil, onde a política de drogas se baseia na abordagem violenta ao usuário e no modelo bélico de combate ao comércio, apoiada por jurássicos como o CFM e a ABP, a legislação uruguaia está corroendo o mercado ilegal e afastando os cidadãos do tráfico de drogas.

Um estudo do OUD, com dados atualizados até dezembro de 2021, estima que o mercado regulado atinja quase 40% dos consumidores de maconha.

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Pesquisadores da Universidade de Minnesota e da Universidade do Colorado, em um estudo publicado na revista Addiction, disseram que é improvável que a legalização da maconha faça com que pessoas que se abstiveram da cannabis antes adquiram o hábito. “Nossas análises sugerem que, entre os indivíduos que usaram durante a vida, a legalização da cannabis pode aumentar a probabilidade de uso recente, mas é improvável que a legalização da cannabis cause iniciação em indivíduos que eram abstêmios ao longo da vida antes da legalização”, escreveram os autores no artigo. “Uma análise do subconjunto de usuários recentes indica que o uso ocorre em frequências médias semelhantes em ambientes legais e ilegais.”

O que a descriminalização e regulamentação do uso e comércio de maconha, de fato, estão fazendo nos países que abandonaram a proibição é o enfraquecimento do mercado ilícito e a proteção da saúde e segurança pública, ao oferecer cannabis produzida sob controle de qualidade.

A última pesquisa anual sobre maconha realizada pelo governo do Canadá, divulgada em dezembro do ano passado, revelou que apenas 5% dos canadenses entrevistados que consumiram cannabis nos últimos 12 meses relataram sempre recorrer a uma fonte ilegal — uma diminuição de 7% em 2021 e 9% em 2020.

O relatório do governo canadense também mostra que a frequência do uso de cannabis não mudou significativamente desde a legalização. A proporção daqueles que relatam uso diário de maconha tem se mantido estável desde 2017, inclusive entre jovens de 16 a 19 anos — a Lei da Cannabis (Cannabis Act) entrou em vigor em outubro de 2018.

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Enquanto isso, em países onde a maconha permanece proibida para uso adulto, o consumo da substância segue em alta, apesar dos recordes de apreensões.

O último relatório anual do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT) sobre o consumo de drogas na Europa, divulgado em junho, revela que 1,3% dos adultos na União Europeia (ou 3,7 milhões de pessoas) consomem cannabis diariamente ou regularmente. Ao mesmo tempo, o número de apreensões de maconha é o maior dos últimos dez anos no continente: em 2021, foram apreendidas 816 toneladas de resina e 256 toneladas de flores na Europa continental. No mesmo ano, cerca de 566.000 delitos de posse ou uso e 100.000 delitos de fornecimento relacionados à cannabis foram registrados na União Europeia.

Segundo dados da Polícia Federal brasileira, suas operações conjuntas com forças de segurança paraguaias destruíram em 2020 mais de 1.000 toneladas de maconha, segundo a estimativa da corporação que considera que cada hectare de plantação destruída produziria três toneladas da droga. A mesma quantidade de cannabis foi apreendida pela PF e pela Polícia Rodoviária Federal no período.

Apesar das apreensões, que aumentam ano após ano, a própria PF reconhece que isso não é o suficiente para enfraquecer o tráfico de drogas e nem reduzir o consumo.

Um levantamento realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostrou que quase 8% dos brasileiros de 12 a 65 anos já usaram maconha ao menos uma vez na vida — a porcentagem é provavelmente muito maior, visto que a maioria das pessoas não se sente à vontade para afirmar que usam uma substância proibida.

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Os países que descriminalizaram e regulamentaram o comércio de maconha, por sua vez, também estão observando a diminuição do uso da droga entre jovens e adolescentes.

Nos Estados Unidos, onde mais de 70% da população vive em estados onde o consumo e comércio de cannabis foram descriminalizados para fins medicinais ou uso adulto, uma pesquisa financiada pelo governo revela que o uso de maconha vem diminuindo significativamente entre os adolescentes.

Um outro estudo, publicado no American Journal of Preventive Medicine, reforça essa descoberta mostrando que a legalização da maconha pelos estados americanos não está associada ao aumento do uso de cannabis entre os adolescentes.

A pesquisa, financiada pelo Instituto Nacional sobre Abuso de Drogas dos EUA, descobriu que “a mudança no status de legalização na adolescência não foi significativamente relacionada à mudança pessoal na probabilidade ou frequência do uso autorrelatado de cannabis no ano anterior”.

Em sua pesquisa de comportamento de risco juvenil, divulgada no início do ano, a Divisão de Saúde do Adolescente e Escolar dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA relatou que o uso de maconha e outras substâncias entre estudantes do ensino médio no país vem diminuindo desde 2015 — a legalização do uso adulto da cannabis começou em 2012 nos estados de Washington e Colorado.

Além da própria maconha, outras substâncias também tiveram seu uso reduzido após a legalização da planta no estado de Washington, segundo um estudo publicado no Journal of Adolescent Health, em julho de 2022, que revelou que pessoas de 21 a 25 anos eram menos propensas a consumir bebidas alcoólicas, cigarro e analgésicos não prescritos após a regulamentação da cannabis para uso adulto.

O impacto positivo na saúde pública da descriminalização do uso e comércio de maconha não para por aí, um estudo que analisou dados da Pesquisa Nacional sobre Uso de Drogas e Saúde dos EUA entre 2008 e 2019 sugere que houve declínio no consumo excessivo de álcool por pessoas na faixa etária de 12 e 20 anos após a aprovação das leis estaduais de uso adulto de cannabis.

Esses achados também desbancam a alegação do CFM e da ABP de que “o consumo da maconha — mesmo sob alegação ‘medicinal’ — representa riscos à saúde de forma individual e coletiva”.

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A nota das entidades, desprezando tudo o que a ciência já descobriu sobre a maconha, continua dizendo que a cannabis “causa dependência gravíssima, com importantíssimos danos físicos e mentais, inclusive precipitando quadros psicóticos (alguns não reversíveis) ou agravando sintomas e a evolução de padecentes de comorbidades mentais de qualquer natureza, dificultando seu tratamento, levando a prejuízos para toda a vida”.

Um estudo publicado recentemente na revista Psychiatry and Clinical Neurosciences não encontrou nenhuma associação significativa entre o uso de maconha e o desenvolvimento de transtornos psicóticos. “Não houve associação significativa entre qualquer medida de uso de cannabis no início do estudo e transição para psicose, persistência de sintomas ou resultados funcionais”, disseram os pesquisadores.

Pesquisadores da Universidade de Bath, na Inglaterra, exploraram a relação entre a potência da maconha e problemas de saúde mental, como ansiedade, depressão e psicose, e a ligação que encontraram entre a planta e a psicose é praticamente nula.

“Havia evidências fracas de uma pequena associação entre a potência da cannabis e a depressão e a ansiedade. Mas não houve associação entre a preferência por cannabis de alta potência ou a concentração de THC e sintomas de psicose”, escreveram os autores.

Um artigo publicado pela epidemiologista britânica Suzanne Gage, na revista The Lancet, revelou que pessoas sujeitas a ter surtos psicóticos ou desenvolver esquizofrenia buscam a maconha mais do que a média da população, porém sem encontrar nenhum indício de que a planta cause esquizofrenia.

A afirmação de que o uso de cannabis está associado ao desenvolvimento de psicose e outras doenças mentais parte dos loucos proibicionistas, como os autores da nota do CFM e da ABP, que não possuem embasamento científico algum e muitas vezes distorcem os resultados dos estudos para impor seu discurso.

Um estudo longitudinal de controle cogêmeo conduzido por pesquisadores da Associação Americana de Psicologia e publicado no Journal of Abnormal Psychology demonstrou como a exposição à maconha durante a adolescência não está associada à psicose de início na idade adulta ou a sinais de esquizofrenia.

“Estudos epidemiológicos mostraram repetidamente que indivíduos que usam cannabis são mais propensos a desenvolver transtornos psicóticos do que indivíduos que não o fazem. Tem sido sugerido que essas associações representam um efeito causal do uso de cannabis na psicose, e que o risco de psicose pode ser particularmente elevado quando o uso ocorre na adolescência ou no contexto de vulnerabilidade genética. Este estudo, no entanto, não suporta essas hipóteses, sugerindo, em vez disso, que as associações observadas são mais prováveis devido à confusão por fatores comuns de vulnerabilidade”, relataram os autores no artigo.

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Um estudo conduzido por cientistas dos Departamentos de Psicologia e de Economia da Universidade do Novo México (EUA) revisou dados anteriores sobre o impacto de fatores ambientais, particularmente o efeito da atividade autoimune, na expressão de perfis esquizofrênicos, bem como explorou o papel da terapia com cannabis na regulação da função imunológica.

Os resultados do estudo revelaram que a cannabis pode oferecer um tratamento eficaz para a esquizofrenia, isoladamente ou em conjunto com outros medicamentos.

A ABP e o CFM também afirmam que o consumo de drogas “contribui para a maior incidência de acidentes de trânsito, homicídios e suicídios”.

Isso pode ser verdade para o álcool, que foi a substância mais detectada nas amostras de sangue coletadas de pessoas internadas por acidentes de trânsito, quedas e episódios de violência, em um estudo conduzido na Universidade de São Paulo (USP). Os dados mostraram que 21% dos motoristas acidentados testaram positivo para álcool, 11% para cocaína e 6% para cannabis — a combinação entre álcool e cocaína foi a mais encontrada nas amostras dessa investigação.

Contudo, o mesmo não pode ser dito sobre a maconha.

As descobertas de um estudo publicado recentemente na Addiction mostram que a implementação da venda legal de maconha para uso adulto no Canadá não está associada ao aumento nas hospitalizações relacionadas a acidentes de trânsito. Os pesquisadores avaliaram as taxas nacionais de atendimentos de emergência e hospitalizações nos anos anteriores e imediatamente após a legalização.

Os resultados são consistentes com os de outro estudo canadense, de 2021, que também não encontrou evidências de que a implementação da Lei da Cannabis estivesse associada a mudanças pós-legalização significativas nas visitas ao departamento de emergência em decorrência de acidentes de trânsito.

Um estudo publicado na American Journal of Public Health em 2017 também demonstrou que as mudanças nas taxas de mortalidade por acidentes de trânsito nos estados americanos de Washington e Colorado, após três anos da legalização do uso adulto de maconha, não foram estatisticamente diferentes daquelas em estados semelhantes que não adotaram a mudança de política.

Também não existe nenhum estudo ou evidência de que o uso de maconha tenha resultado em homicídio ou suicídio, muito pelo contrário, a ciência já demonstrou que a cannabis pode ajudar as pessoas a evitarem pensamentos suicidas.

Em uma análise de dados de pesquisas de saúde coletados pelo Statistics Canada de mais de 24.000 canadenses, pesquisadores do Centro sobre Uso de Substâncias da Colúmbia Britânica e da Universidade da Colúmbia Britânica descobriram que as pessoas que têm transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) e se medicam com maconha são muito menos propensas a sofrerem de depressão severa e terem pensamentos suicidas do que aquelas que não fazem uso da planta.

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A nota falaciosa da ABP e do CFM também afirma que “não há experiência histórica ou evidência científica que mostre melhoria com a descriminalização de drogas ilícitas”, ignorando a realidade de países como Suíça e Portugal, que adotaram a descriminalização e a redução de danos como políticas públicas e viram o número de overdoses fatais e usuários abusivos de drogas cair drasticamente.

E continua: “Pelo contrário, é nos países com maior rigor no enfrentamento às drogas que há diminuição do número de casos de dependência química e de violência relacionada ao consumo e tráfico dessas substâncias. No Brasil, um exemplo dessa abordagem é o combate ao tabagismo que caiu de um índice de consumo de 50%, na população em geral, para cerca de 10%”.

Sem argumentos para embasar sua posição retrógrada, as entidades acabam entrando em contradição ao afirmar que a política que deu certo no sentido de fazer reduzir o consumo foi a regulamentação, no caso do tabaco.

O Brasil só obteve sucesso no controle do tabagismo por que, ao invés de seguir a lógica proibicionista, investiu em estratégias de prevenção e educação.

Como dito anteriormente, no caso das substâncias que permanecem proibidas e criminalizadas, como a cannabis, o uso se mantém em alta, apesar dos recordes anuais de apreensões, a exemplo do Brasil e da Europa.

Mas os defensores do proibicionismo insistem em seguir vivendo em um mundo paralelo e negando os fatos históricos do mundo real, onde a política de proibição tem causado infinitamente mais males para a sociedade do que qualquer substância ou planta, como os rios de dinheiro público gastos com a “guerra às drogas”, a destruição de milhares de famílias que têm seus entes queridos e arrimos presos por conta de uma lei ultrapassada e racista e as mortes frequentes de crianças, jovens e cidadãos que não consomem nem usam qualquer droga por “balas perdidas” nas comunidades periféricas.

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Imagem de capa: jess abtu / Vecteezy.

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