Guerra às drogas: mais um estudo denuncia que negros e pobres são alvo da aplicação da lei

Fotografia, em P&B, mostra um punho cerrado à frente de uma superfície preta irregular. Imagem: Tarun Savvy | Unsplash.

Pesquisa mostra como o Estado reforça a estigmatização das populações periféricas ao concentrar as operações policiais nas favelas

Abordagens policiais aleatórias de “elementos suspeitos” ou com base em alguma “denúncia anônima”, sob a justificativa do combate ao tráfico de drogas, evidenciam que a presunção de inocência cede lugar para a presunção de culpabilidade quando o alvo é a pessoa preta ou parda que vive em territórios periféricos.

Essa foi a realidade constatada pelo promotor de justiça Guilherme Roedel Fernandez Silva, que atua na comarca de Montes Claros, em Minas Gerais, e observou padrões repetitivos de abordagens policiais ao longo dos anos e uma aparente seletividade na atuação estatal no combate às drogas.

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A investigação do modo de atuação das forças policiais, no contexto da guerra às drogas, resultou em uma dissertação de mestrado, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociedade, Ambiente e Território da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).

O trabalho “Guerra às drogas na cidade: práticas de estado na construção de territórios de exclusão” levantou e analisou 456 ocorrências policiais por uso de drogas e 1.219 ocorrências de tráfico de drogas registradas na cidade de Montes Claros durante o ano de 2021.

A análise revelou que a maior parte dos autuados são homens negros, com baixa escolaridade, sendo que a maioria das ocorrências foi registrada nas favelas da cidade. Os autuados por uso de drogas tinham entre 17 e 25 anos, sendo que 12% eram menores de idade, enquanto os autuados por tráfico tinham entre 17 e 29 anos, com 19% sendo adolescentes.

Os dados também revelam que praticamente não houve ocorrências por uso ou tráfico de drogas nos bairros onde vivem as classes mais ricas da cidade, ao passo que as favelas e áreas onde vivem as populações mais carentes concentram os maiores índices de ocorrências.

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Segundo o autor, as regiões das favelas coincidem com as denominadas “zonas quentes de criminalidade”, que são classificadas pela polícia militar como áreas para onde deve ser direcionado o emprego de policiais “com vistas a prevenir e reprimir” o crime.

A imposição desse rótulo, obviamente, contribui para a estigmatização das populações faveladas e cria um ciclo que perpetua a guerra aos negros e pobres.

“Se todos os dias são registradas em média cinco ocorrências de crimes de drogas nas imediações e nos interiores das favelas, não havendo patrulhamento semelhante perto das universidades, bares e boates dos bairros nobres, será difícil outra região da cidade superar tais índices de criminalidade”, destaca Roedel em sua tese.

Em sua dissertação, Roedel denuncia a influência do racismo, preconceito, autoritarismo e interesses políticos e econômicos que orientam as práticas de Estado junto ao Sistema de Justiça Criminal brasileiro, visto que deputados e senadores tipificam criminalmente e estabelecem duras penas para condutas socialmente insignificantes, comumente praticadas por grupos sociais vulnerabilizados.

“Para a lei brasileira, é mais grave o indivíduo reincidente vender uma bucha de maconha que um motorista matar uma criança no trânsito por que se distraiu com o celular enquanto dirigia. Se o motorista matar novamente no trânsito, ainda assim sua punição será menor que a do comerciante da erva proibida” — Guilherme Roedel Fernandez Silva, promotor de justiça.

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O promotor também discorre sobre os motivos e interesses escusos que garantem o empenho da Polícia Militar de Minas Gerais na repressão às drogas: elogios nas fichas funcionais e premiações individuais por apreensões de drogas e prisões de traficantes. Segundo Roedel, embora não exista nenhum documento oficial que regulamente esses prêmios, “diversos policiais ouvidos informalmente relatam que os comandantes das unidades costumam conceder folgas ou preferências de escolha nas escalas de serviço pelos serviços prestados na guerra às drogas”.

“Os rótulos estatais que distinguem os grupos e territórios, de um lado os criminosos e do outro os ‘cidadãos de bem’, de um lado as Zonas Quentes de Criminalidade e do outro uma zona pacífica, facilita a aceitação do discurso que, com a finalidade de restabelecer a ordem e a tranquilidade, autoriza o Estado a empregar todos meios necessários, ainda que violem direitos humanos fundamentais”, pondera o autor.

O estudo conclui que o superpoliciamento das favelas e a prisão diária de jovens envolvidos com drogas, “além de não afetar a oferta e o consumo”, gera um círculo vicioso que reforça a marginalização dos moradores dos territórios periféricos.

Infelizmente, a realidade da cidade mineira revelada pelo estudo reflete o que acontece por todo o país, notadamente nas periferias dos grandes centros urbanos — uma verdadeira carnificina de negros e pobres em nome da guerra às drogas.

Entre 2017 e 2018, 75% das pessoas mortas no Brasil em decorrência de intervenções policiais — justificadas majoritariamente pelo combate às drogas — eram negras, segundo dados apontados pelo projeto Drogas: Quanto Custa Proibir, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).

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No Rio de Janeiro, quase 80% dos mortos em ações policiais em 2019 eram negros, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ). Em 2021, o percentual de pessoas negras assassinadas pela polícia fluminense foi de 87%, de acordo com um relatório da Rede de Observatórios da Segurança Pública.

O levantamento da Rede também revela a letalidade da atuação policial contra a população negra na Bahia: de 616 pessoas mortas pela polícia baiana em 2021, 603 eram negras — número que pode ser muito maior, uma vez que 397 vítimas não tiveram sua cor informada pelo governo.

“Esses policiais saem às ruas instruídos a buscar elementos suspeitos, focalizando bairros negros e jovens negros, em geral com o álibi de apreender drogas. São nessas operações que ocorrem a maioria das mortes provocadas por essas corporações. A ação policial é a face mais visível e palpável do racismo”, denuncia o relatório.

Na cidade de São Paulo, segundo levantamento da Pública, pessoas negras são mais condenadas do que brancas por tráfico de drogas, mesmo quando portam menor quantidade da substância.

O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou, na última quarta-feira (2), o julgamento sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. Após quase oito anos, o quarto voto no processo foi do ministro Alexandre de Moraes, que propôs o parâmetro de 60 gramas de maconha, ou seis plantas fêmeas, como quantidade limítrofe para diferenciar usuários de traficantes.

Moraes embasou seu voto em um estudo da Associação Brasileira de Jurimetria, que que analisou mais de 1,2 milhão de ocorrências relacionadas a drogas no estado de São Paulo, entre 2003 e 2017, e revelou a seletividade penal na aplicação da lei de drogas.

“O branco, para ser considerado traficante, tem que ter 80% a mais (de maconha) que o preto ou pardo. Então, vamos somando as três grandes características: o analfabeto, jovem, em torno de 18 anos, preto ou pardo, a chance dele, com uma quantidade ínfima, ser considerado traficante é gigantesca. O branco, mais de 30 anos, com curso superior, ele precisa ter muita droga, no momento com ele, para ser considerado traficante”, afirmou o ministro, baseado no estudo.

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Imagem em destaque: Tarun Savvy | Unsplash.

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