Marcada por desinformação e ataques ao STF, votação na CCJ do Senado aprova PEC das Drogas

Jaques Wagner, Fabiano Contarato e Humberto Costa, do PT, e Marcelo Castro, do MDB, foram os únicos senadores a votar contra a proposta retrógrada

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que criminaliza o porte de qualquer quantidade de substância ilícita foi aprovada pela maioria dos membros da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado nesta quarta-feira (13). A medida tenta constitucionalizar a “guerra às drogas” e dar uma resposta política ao Supremo Tribunal Federal (STF), que está discutindo a criminalização do usuário e precisa de apenas mais um voto para descriminalizar o porte de maconha para consumo.

Com votos contrários de apenas quatro senadores na CCJ, a PEC agora segue para o plenário do Senado, onde precisará ser votada em dois turnos, e depois para a Câmara dos Deputados. Para ser promulgada em forma de emenda constitucional, a proposta deve ser aprovada nas duas casas legislativas.

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A votação nesta quarta-feira foi um verdadeiro show de horrores de desinformação, incluindo a demonização da maconha, ataques ao STF, discursos puramente moralistas e reacionários e a exaltação dos canabinoides sintéticos em detrimento da cannabis para uso medicinal.

Os senadores Eduardo Girão (Novo-CE), Carlos Potinho (PL-RJ), Esperidião Amin (PP-SC), Plínio Valério (PSDB-AM), Vanderlan Cardoso (PSD-GO), Rogério Marinho (PL-RN), Jorge Seif (PL-SC), Jorge Kajuru (PSB-GO), Mecias de Jesus (Republicanos-RR), Sergio Moro (União-PR), Magno Malta (Pl-ES), Izalci Lucas (PSDB-DF), Marcos Rogério (PL-RO), Calor Viana (Podemos-MG), Marcos do Val (Podemos-ES), Marcos Pontes (PL-SP), Flávio Bolsonaro (PL-RJ), Zequinha Marinho (Podemos-PA), Eduardo Braga (MDB-AM) e Lucas Barreto (PSD-AP) mostraram que, se depender do Congresso, o Brasil vai continuar superlotando os presídios com usuários de drogas.

As falas dos parlamentares favoráveis à PEC também deixaram claro que a motivação para avançar a proposta é muito mais para atacar o STF do que para resolver algum problema de segurança ou saúde pública. Por incapacidade cognitiva ou pura má-fé, a grande maioria dos senadores alegou que o Judiciário está “legislando” ao julgar o tema, quando na verdade o julgamento na Suprema Corte analisa a constitucionalidade da criminalização do usuário de drogas.

Sendo a análise da constitucionalidade de uma lei de competência exclusiva do Poder Judiciário, é óbvio que os ministros do STF precisam definir uma quantidade-limite que diferencie o usuário do traficante ao considerar como inconstitucional o artigo da Lei de Drogas que criminaliza o porte de substâncias para consumo.

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Para o relator da matéria, o senador Efraim Filho (União-PB), a mera descriminalização do usuário favoreceria o crime organizado. “A descriminalização leva à liberação do consumo, mas a droga continua ilícita, você não vai encontrar ela em mercado nem em farmácia, só existe o tráfico para poder adquirir. Portanto, descriminalizar é fortalecer o tráfico, o tráfico é quem financia o crime organizado”, disse o bolsonarista no início do debate.

Efraim acolheu uma emenda sugerida pelo senador Rogério Marinho, que altera o texto para considerar as “circunstâncias fáticas do caso concreto” ao caracterizar o porte de drogas como para uso pessoal ou tráfico. O relator já havia emendado a redação original da PEC para fazer a diferenciação entre traficante e usuário, prevendo ao último a aplicação de “penas alternativas à prisão e tratamento contra dependência”.

Na votação desta quarta, os únicos senadores que lançaram mão da razoabilidade e analisaram a realidade que a atual política repressiva de drogas vem causando, como o encarceramento de usuários como traficantes em decorrência da cor da pele e da condição social, foram os senadores do PT e o senador Marcelo Castro (MDB-PI).

“Eu não acho que é há um clamor da sociedade sobre esse tema. O que aconteceu todos nós sabemos: uma decisão do Supremo que foi tomada por algum de nós como uma invasão da nossa competência e a reação a isso foi a PEC”, disse o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA). “Há um outro clamor que é preciso que nós ouçamos aqui: são os pais de crianças epiléticas, com convulsão, com uma série de doenças, que hoje, sabidamente no mundo inteiro científico e farmacêutico, são curadas com o que se chama de ‘óleo de canabidiol’, que nada tem a ver com a cannabis ‘recreativa’”.

Wagner (PT-BA) solicitou que seja realizada uma sessão temática de debates para tratar sobre o uso medicinal da maconha. “Eu quero trazer na audiência pública não o pessoal que quer o recreativo, mas sim senhores de 90 anos que não se levantavam. Eu não estou fazendo apologia, só estou dizendo que não podemos fechar os olhos para a ciência. E o mundo inteiro está fazendo isso, eu acabei de vir dos EUA e está na prateleira o óleo de CBD”, apontou o petista.

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O senador Fabiano Contarato (PT-ES) criticou os membros da CCJ que acusaram o STF de invadir a competência do Congresso. “Se nós nos acovardamos, nos intimidamos e não enfrentamos o tema para definir quem é traficante ou usuário, o Supremo Tribunal Federal é instado a dizê-lo. Aconteceu isso com o casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, acontece isso com inúmeros temas, que para nós, representando o poder majoritário, preferimos ficar deitados eternamente em berço esplêndido”, explanou.

“Sabe o que é que vai definir com essa emenda que foi apresentada com ‘circunstâncias fáticas’? Que um pobre preto, em um local de pobreza, vilipendiado dos seus direitos elementares, como falta de saneamento básico, iluminação pública, educação e saúde pública de qualidade, flagrado com um cigarro de maconha, as circunstâncias fáticas ali serão a cor da pele e o local do crime, e a ele vai ser atribuído ‘tráfico de entorpecente’. Agora, nos bairros nobres, pelos rincões do Brasil, aqui no Plano Piloto em Brasília, aquele mesmo jovem, com a mesma quantidade, pelas circunstâncias fáticas, vai ser tratado como usuário de substância entorpecente”, denunciou Contarato.

Já Humberto Costa, senador do PT por Pernambuco, apontou para a inversão do ônus da prova promovida pela PEC, que “se coloca mais uma vez para aquele que é acusado, quando deveria ser o ônus do acusador, ou seja, a pessoa provar ela própria que ter uma quantidade qualquer que seja ela, pequena no caso, de droga a transforma em traficante”.

“A proposta com o substitutivo do senador Efraim fala da existência de uma diferença entre traficante e usuário, mas não diz que diferença é essa, ou como objetivamente fazê-lo. Além do mais, determina ao usuário a possibilidade de ser condenado, de ter os seus antecedentes criminais marcados, de ter a perspectiva da reincidência, de ter até mesmo os seus direitos políticos cassados, por ter recebido uma chamada pena alternativa”, advertiu Humberto.

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Marcelo Castro, por sua vez, ressaltou que os apoiadores da PEC estão tentando incluir uma norma que não é constitucional na Constituição, apenas para reforçar a criminalização do usuário.

“Nós estamos equiparando o usuário ou o dependente ao traficante, ao criminoso. Nós estamos incluindo na Constituição que todo aquele que for pego com qualquer quantidade de droga, meio grama, é um criminoso. Isso é sensato? Eu entendo que não. Então, a pessoa que fuma um baseado de maconha, recreativamente, está na sua intimidade, na sua privacidade. Ela não está ofendendo a saúde pública, não está prejudicando a vida de ninguém”, ponderou o senador piauiense.

A PEC 45/2023, de autoria do presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG), trata-se de uma resposta meramente política ao julgamento do STF. Isso por que o texto contraria a própria Constituição Federal, indo totalmente contra os princípios constitucionais da intimidade e da vida privada e do direito à liberdade e à autolesão.

Parada desde setembro do ano passado, a PEC voltou a tramitar logo após o Supremo retomar o julgamento sobre a descriminalização do porte de cannabis para consumo pessoal. A Corte já tem um placar de 5 a 3 pela inconstitucionalidade da criminalização do usuário de maconha — até o momento, todos os ministros que votaram deram parecer favorável pela fixação de uma quantidade limítrofe para a distinção entre o porte para uso pessoal e o tráfico.

A Lei 11.343/2006 despenalizou o porte de drogas para uso, ou seja, removeu a pena de prisão, prevendo punições alternativas, como a prestação de serviços à comunidade. O texto, no entanto, não definiu parâmetros objetivos para a diferenciação entre usuário e traficante, deixando a definição a cargo da subjetividade de policiais, promotores e juízes.

Essa discricionariedade resultou no encarceramento em massa de pessoas acusadas pelo crime de tráfico de drogas, em sua grande maioria jovens negros e pobres. A polícia não precisa de provas para legitimar a prisão de um indivíduo por tráfico, bastando o seu testemunho.

Os senadores que votaram pela aprovação da PEC ignoram vários estudos, onde foi demonstrado que a maioria das pessoas encarceradas e mortas pela polícia em decorrência da Guerra às Drogas são negras e periféricas.

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Imagem de capa: Agência Senado / Edilson Rodrigues.

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