Racismo na aplicação da Lei de Drogas é revelado em mais um estudo

Cannabis. Foto: Pxhere.

Pesquisa da Iniciativa Negra revela que negros e pobres são o alvo da “guerra às drogas” em São Paulo; falta de critérios objetivos para distinção entre usuário e traficante é um dos propulsores do superencarceramento da população negra

A maioria das pessoas presas por tráfico de drogas no estado de São Paulo são jovens, negras, pobres e sem antecedentes criminais. Isso é o que revela a pesquisa “Liberdade Negra Sob Suspeita: o pacto da guerra às drogas em São Paulo”, que avaliou 114 processos penais com o objetivo de analisar a aplicação da Lei de Drogas (11.343/2006) a partir de indicadores sociorraciais.

O relatório foi produzido pela Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, em parceria com a Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas e com o apoio do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC) da Defensoria Pública de São Paulo, e inclui dados sobre processos de pessoas presas por crimes relacionados à Lei de Drogas até de fevereiro de 2020.

“A história dos processos de consolidação da política de drogas no Brasil tem suas raízes na formação de uma sociedade colonial e escravocrata. Frutos dessa história produziram a atual Guerra às Drogas, marcada por políticas repressivas, violentas e punitivistas direcionadas a grupos sociais pertencentes às populações negras e aos territórios periféricos, gerando encarceramento e o aprofundamento das desigualdades sociorraciais”, afirma o documento.

A pesquisa revelou que 58% das prisões por delitos relacionados à Lei de Drogas em São Paulo são de jovens com idade entre 18 e 21 anos. Os dados também apontam que a maior parte das pessoas acusadas por tráfico (51%) não possuíam nenhum antecedente criminal antes de serem presas e que 54% dos processos estão relacionados a pessoas negras.

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O número de pessoas negras acusadas por tráfico de drogas, no entanto, pode ser muito maior do que o levantado pela pesquisa, uma vez que as pesquisadoras identificaram alguns processos onde o escrivão policial registrou a cor/raça como “branca” apesar da pessoa acusada se autodeclarar “parda” durante o atendimento no Instituto Médico Legal.

O racismo na aplicação da Lei de Drogas fica ainda mais evidente ao levar-se em consideração que, segundo dados levantados pela pesquisa junto ao Censo Demográfico de 2010, 37% da população da cidade de São Paulo se autodeclara negra, enquanto mais da metade das pessoas presas por tráfico no Estado são negras.

Com relação à ocupação profissional das pessoas acusadas pela Lei de Drogas no estado de São Paulo, os dados revelam que 54% não estavam trabalhando no momento da prisão e 40% possuíam uma ocupação profissional — destas, 65% ocupavam cargos em serviços gerais e técnicos de manutenção.

Das pessoas que declararam possuir alguma profissão antes da prisão, 24% tinham um rendimento entre R$ 1 e R$ 100, enquanto 35% recebiam entre R$ 501 e R$ 1.500 e 28% possuía uma renda acima de R$1.500.

A descriminação contra a população negra também é revelada na forma como ocorrem as prisões: enquanto as pessoas negras foram em sua maioria presas durante patrulhamento (56%) ou em investigações de denúncia anônima (52%) por crimes de drogas, a maioria dos brancos (63%) foi presa durante operação policial.

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O estudo aponta que identificar essa distinção na abordagem entre pessoas negras e brancas é importante, pois operações policiais demandam investigações e necessitam levantar informações até que seja determinada a pessoa responsável pelo delito. Já no caso dos patrulhamentos, o resultado das prisões se dá por meio de ações arbitrárias com base em atitudes suspeitas, pessoas identificadas como conhecidas dos meios policiais e em locais marcados como pontos de venda de drogas.

“Estes fatos indicam que é muito mais provável ter seus direitos violados sendo uma pessoa negra e periférica”, destaca o relatório.

As pesquisadoras também ressaltam que por meio de várias pesquisas é possível demonstrar a ausência de limites significativos ao exercício da discricionariedade policial, “que se tornou uma característica-chave da concepção da Guerra às Drogas, legitimando a perseguição de sujeitos negros, pobres e moradores das periferias, ainda que por infrações não violentas ligadas as drogas”.

Embora não apresente números referentes às médias de quantidades de drogas apreendidas, o documento revela que, nos 114 processos analisados, foram apreendidos, no total, 18 kg de maconha, 3 kg de cocaína, 1 kg de crack, 1,5 litro de solvente (lança-perfume) e 86 ml de LSD — considerando o número de pessoas presas, a quantidade de droga é relativamente pequena.

“A situação trazida pela presente pesquisa comprova as estatísticas de que o gasto com recursos públicos na repressão ao tráfico de drogas tem atingido com muito mais rigor as pessoas usuárias do que a pretendida produção e o tráfico de drogas”, observa o relatório.

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O estudo também ressalta que, apesar de a Lei de Drogas não prever a pena de prisão para a pessoa usuária de substâncias ilícitas, “a falta de critérios objetivos para a distinção entre usuário e traficante, tendo em vista que as mesmas condutas previstas no artigo 28 também estão presentes no artigo 33, levou, ao longo dos anos, a um aumento exponencial no encarceramento em massa”.

A violência por parte das forças policiais no momento das abordagens foi identificada em 13% dos processos analisados, sendo que a Polícia Militar é a responsável pela maioria das violências praticadas constando em 80% das ocorrências. Além disso, em 66% dos casos apurados a agressão foi cometida contra pessoas negras.

“Novamente nos deparamos com o fato de que o sujeito negro na cidade de São Paulo é alvo de violências das quais pessoas brancas e pertencentes às camadas sociais mais altas não são submetidas com igual recorrência”, diz o documento.

As informações contidas nos processos sobre agressões e violências praticadas pelas autoridades responsáveis pelas prisões das pessoas que estavam sendo acusadas de tráfico de drogas “expõem e ratificam a atuação histórica marcada por uma política bélica e repressiva do sistema de justiça criminal”. “Sequestros, torturas para obtenção de confissão e provas por meio ilícitos, invasão de privacidade, entre outras violações de direitos apareceram nos depoimentos”, aponta o relatório.

Em relação aos argumentos utilizados para fundamentar as sentenças das pessoas acusadas sob a Lei de Drogas, a pesquisa aponta para a arbitrariedade e subjetividade das decisões dos juízes, que na maioria das vezes se baseiam unicamente na palavra do policial. A análise dos processos revelou que em apenas 15 ocorrências houveram testemunhas civis, enquanto em 99 ocorrências (87% dos casos) a única testemunha do processo foi a própria autoridade responsável pela prisão.

“Ao converter o depoimento policial em prova exclusiva do conjunto comprobatório dos fatos, legitimando-o em detrimento da palavra e defesa da pessoa acusada, o debate político-jurídico em torno do consumo e comércio de drogas se torna dissimulado, arbitrário e obsoleto. É esta discricionariedade policial e judicial que mobiliza o encarceramento em massa e prolonga tragédias sociais, perpetuando a guerra e a intervenção militar nos territórios de pessoas, famílias e comunidades negras”, destaca o documento.

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Imagem de capa: Pxhere.

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