Maioria dos réus por tráfico são negros e portavam pequena quantidade de droga, diz pesquisa

Estudo revela que a maioria das pessoas processadas por tráfico de drogas são pequenos comerciantes ou usuários, uma vez que a mediana de quantidades apreendidas de maconha nos processos estaduais foi de 85 gramas
A promulgação da atual Lei de Drogas (lei nº 11.343) em 2006, apesar da “boa intenção” ao remover a pena de prisão para o usuário, foi o estopim para explosão do número de pessoas encarceradas pelo crime de tráfico de drogas.
Isso por que o texto não estabeleceu critérios objetivos para a diferenciação entre porte para consumo e tráfico, concedendo uma grande margem de discricionariedade às autoridades policiais e judiciais para a distinção entre uso e tráfico — ou seja, basta a palavra de um policial para que uma pessoa seja condenada como traficante.
Essa subjetividade resultou em uma lógica de seletividade penal na aplicação da lei, que pode ser observada no perfil dos encarcerados por tráfico de drogas no país, evidenciado por vários estudos: jovens negros e pobres com baixa escolaridade.
Agora, levantamentos realizados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (Senad) do Ministério da Justiça e Segurança Pública somam-se à literatura produzida sobre o perfil de réus condenados por crimes previstos na Lei de Drogas.
A pesquisa “Perfil do processado e produção de provas nas ações criminais por tráfico de drogas”, divulgada nessa sexta-feira (22), cobriu mais de 5 mil autos processuais por tráfico de drogas sentenciados em 2019 no âmbito dos Tribunais de Justiça estaduais e dos Tribunais Regionais Federais e mostra que as pessoas processadas por tráfico são majoritariamente jovens, de baixa escolaridade, não brancas e flagradas com pouca quantidade de drogas.
Segundo os dados, o perfil desses réus é predominantemente composto de jovens de até 30 anos, que cursaram no máximo o ensino fundamental, e não brancos. O estudo revela também que 30% das pessoas processadas por tráfico nos tribunais estaduais alegaram que a droga apreendida se destinava ao uso pessoal e que 49% dos acusados afirmaram ser usuários ou sofrer com dependência.
“Um dos dados mais relevantes é o que evidencia o incontestável quadro de racismo institucional no sistema de justiça criminal, reforçando a necessidade premente de ações que incidam sobre os vieses raciais dos agentes de segurança pública e do sistema de Justiça”, afirmou a secretária Nacional de Políticas sobre Drogas, Marta Machado, em nota do IPEA.
Para ela, além de ser útil para subsidiar a construção e o monitoramento de políticas públicas, a pesquisa fortalece o compromisso da Senad “em conduzir a política sobre drogas tendo como pressupostos a promoção de justiça racial, a garantia dos direitos humanos e a proteção aos grupos vulneráveis mais impactados pelos efeitos discriminatórios resultantes desta política de Estado”.
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Os resultados também revelam que a maioria dos réus processados por tráfico de drogas são pequenos comerciantes ou usuários, visto que a mediana de quantidades apreendidas nos processos que tramitam nos tribunais estaduais foi de 85 gramas de maconha e 24 gramas de cocaína, e também que 83% dos condenados não possuíam maus antecedentes e 86% não tinham ligação com facção criminosa.
Em relação à motivação das abordagens, de acordo com o relato de policiais, o estudo mostra que o “comportamento suspeito” feito durante o patrulhamento (32,5%) ou denúncia anônima (30,9%, sendo esta raramente documentada no processo) foram os principais motivos. Além disso, os dados também revelam um alto percentual de entradas em domicílio (49%), das quais apenas uma pequena parcela (15%) com mandado judicial — ou seja, cerca de 41% dos réus foi alvo de busca domiciliar sem autorização da justiça.
Enquanto a maior parte das abordagens ou “flagrantes” foi realizada por policiais militares (76,8%) e apenas 19% por policiais civis, o levantamento denuncia a falta de inteligência policial nas operações de “repressão às drogas”: 84% dos inquéritos levados à justiça estadual não tiveram origem em investigações anteriores.
Para a pesquisadora do IPEA Milena Soares, uma das coordenadoras do relatório, os resultados apontam para a necessidade de uma “mudança no foco de policiamento ostensivo para trabalho de investigação policial, maior rigor do judiciário na convalidação de entradas em domicílio sem mandado e critérios objetivos de quantidade de cannabis e cocaína, para a presunção de porte para uso próprio”.
Guerra aos negros
O novo estudo confirma a realidade de que o próprio Estado contribui para a estigmatização da população negra e pobre e utiliza a desculpa de “combate às drogas” para esfacelar as camadas mais vulneráveis da sociedade.
Como pode ser visto também em uma pesquisa separada realizada pelo promotor de justiça Guilherme Roedel Fernandez Silva, da comarca de Montes Claros (MG), que evidencia como a presunção de inocência cede lugar para a presunção de culpabilidade quando o alvo da polícia é a pessoa preta ou parda que vive em territórios periféricos.
Os dados mostram que a maior parte das pessoas autuadas por crimes relacionados à Lei de Drogas em 2021, em Montes Claros, são homens negros e com baixa escolaridade, e que a maioria das ocorrências foi registrada nas favelas.
Além disso, a pesquisa constatou que praticamente não houve ocorrências por uso ou tráfico de drogas nos bairros onde vivem as classes mais ricas da cidade, ao passo que as favelas e áreas onde vivem as populações mais carentes concentram os maiores índices de ocorrências.
Segundo o promotor, as regiões das favelas coincidem com as denominadas “zonas quentes de criminalidade”, que são classificadas pela polícia militar como áreas para onde deve ser direcionado o emprego de policiais “com vistas a prevenir e reprimir” o crime. A imposição desse rótulo, obviamente, contribui para a estigmatização das populações faveladas e cria um ciclo que perpetua a guerra aos negros e pobres.
“Além de não afetar a oferta e o consumo”, o superpoliciamento das favelas e a prisão diária de jovens envolvidos com drogas gera um círculo vicioso que reforça a marginalização dos moradores dos territórios periféricos, conclui o estudo.
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