Em audiência na Câmara, participantes divergem sobre PEC das Drogas

Foto da audiência na Câmara dos Deputados sobre a PEC que criminaliza o porte de drogas. Imagem: Mário Agra | Câmara dos Deputados.

Nathália Oliveira (Iniciativa Negra), Sílvia Souza (Conselho Federal da OAB) e Gabriel Sampaio (Conectas) salvaram o debate, que foi tomado pela desinformação. Maioria dos participantes defendeu com veemência a criminalização do usuário de substâncias

A proposta que busca incluir a criminalização do porte de qualquer quantidade de droga ilícita na Constituição Federal foi debatida nesta quarta-feira (22) na Câmara dos Deputados. O debate foi realizado no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), que promoveu a audiência pública para analisar a admissibilidade do texto.

De autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 45/2023 inclui um dispositivo na Constituição que reforça a criminalização de quem usa e de quem comercializa substâncias ilícitas. O texto praticamente repete o que já é previsto na Lei de Drogas (11.343/2006), inclusive deixando a cargo de autoridades policiais e judiciais a definição de quem é traficante e quem é usuário.

A audiência começou com as mentiras proferidas por Roberto Motta, ex-assessor especial do governo do Rio de Janeiro, que participou remotamente para defender a “guerra às drogas” e a aprovação da PEC com uma série de falácias sem qualquer lógica.

Segundo Motta, a maconha possui apenas dois componentes, THC e CBD — quando a ciência já descobriu que a planta possui mais de 500 substâncias. Ele afirmou ainda que o tetraidrocanabinol causa distúrbios psiquiátricos, sendo que na realidade a pesquisa científica aponta para inúmeros efeitos medicinais do canabinoide, inclusive para condições psiquiátricas. Para o proibicionista, as drogas não são uma questão de saúde pública e a melhor política é a que inclui a repressão.

Mas para a socióloga Nathália Oliveira, diretora da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, o único resultado da política proibicionista é o superencarceramento da população negra.

“Faço parte dos 55% de negros e pardos desse país, cor determinante para que a minha comunidade figure de modo super-representado nos índices de letalidade policial e encarceramento. Em 2022, atingimos o recorde de 68% de pessoas negras na população carcerária, das quais um terço estão presas por drogas. Além disso, 90% das balas perdidas sempre encontram endereço certo nas favelas, em sua maioria atingem alvos negros”, denunciou a socióloga.

Socióloga e diretora da Iniciativa Negra por Uma Nova Política sobre Drogas, Nathália Oliveira. Foto: Mário Agra / Câmara dos Deputados.

Nathália explicou que a proibição de algumas drogas resultou em uma indústria transnacional e ilegal “que corresponde a cerca de 1,5% de todas as riquezas produzidas no globo e opera sem nenhuma regulamentação, sobrevivendo mediante grandes esquemas de corrupção financeira de redes ilícitas, instituições públicas e privadas, para a manutenção de um monopólio”. “O proibicionismo, portanto, não nos protege, ele fragiliza dinâmicas, relações e instituições democráticas e da vida privada”, ressaltou.

“Este poder paralelo controla territórios e não guarda nenhum apreço ou cuidado com a vida das pessoas menos favorecidas, pelo contrário, as atividades criminosas sobrevivem justamente da exploração das pessoas vulnerabilizadas economicamente, sobretudo aquelas que são presas nas cadeias como pequenos traficantes. Um exemplo disso é o aumento de pessoas faccionadas, que são recrutadas diariamente nas prisões insalubres de nosso país”, afirmou Nathália, mencionando uma pesquisa de 2023 do IPEA, segundo a qual menos de 13% dos condenados por crimes relacionados a droga tem algum envolvimento prévio com facções criminosas.

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Para o advogado Gabriel Sampaio, diretor da Conectas, a PEC é inconstitucional e não é a capaz de enfrentar o problema concreto vivido hoje a partir da legislação de drogas.

“Toda a fundamentação feita a partir de uma ideia, dos malefícios e dos problemas do uso de drogas, pode ser importante para o debate social e em qualquer esfera da sociedade. Mas é preciso identificar que o texto da proposta de emenda à constituição criminaliza pessoas usuárias”, observou o advogado, destacando que a PEC impõe a ideia da prisão e da criminalização, em detrimento da saúde pública, da prevenção e de um papel mais educativo do Estado.

Segundo Sampaio, pode haver um horizonte utópico de que “possamos viver uma sociedade livre de drogas, livre do ilícito, livre da maldade, mas esse horizonte é impossível de existir”. “Então nós precisamos lidar com o acúmulo dos dados da ciência e da realidade. Os dados que têm mobilizado diversos países no mundo e diversas conclusões que já estão estabelecidas como consenso no cenário internacional”, ponderou.

Advogado e diretor da Conectas, Gabriel Sampaio. Imagem: Mário Agra / Câmara dos Deputados.

“O que nós experimentamos após a lei de 2006? Foi um aumento exponencial do encarceramento em massa. E por que triplicaram as prisões, do ponto de vista dos números relativos, provocadas pela lei de drogas? Primeiro, por que a lei ficou muito subjetiva. E os termos da lei que acabam sendo trazidos para a emenda constitucional reforçam o subjetivismo, que é marcado por elementos que são da estrutura da nossa sociedade, por exemplo, de acordo com o local dos fatos”, disse Sampaio, e continuou: “O que diferencia uma pessoa em relação ao local em que ela está portando eventual substância? É a sua classe social, é a sua cor, é isso que determina uma desigualdade estrutural”.

“Essa proposta de emenda à Constituição é contrária à própria Constituição. Ela apresenta uma resposta inapropriada e é um retrocesso para a atual política de drogas e a análise científica e histórica, que já condenou a ideia e a noção de guerra às drogas ou de tratar usuários como criminosos”, concluiu.

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O psiquiatra Ronaldo Laranjeira, que lucra com a proibição através da internação involuntária de usuários de drogas em sua clínica “terapêutica” e em hospitais geridos pela SPDM, deturpou o debate proferindo uma série de falácias e fake news sobre a maconha, como a de que sua legalização fez aumentar a criminalidade e o comércio ilícito de cannabis nos estados americanos que adotaram a mudança política.

Laranjeira não tem nenhuma preocupação com a saúde pública, mas sim em lucrar com a internação de pessoas usuárias de drogas, uma prática que opera sem embasamento científico e está totalmente na contramão da reforma psiquiátrica. Ele recebeu quase R$ 12 milhões do governo federal, durante a gestão passada, para realizar uma pesquisa comprada sem edital que tentou rebater o estudo que comprovou a inexistência de uma epidemia de drogas no país.

A advogada Sílvia Souza, presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB, deixou claro que a oposição à aprovação da PEC não significa a defesa da descriminalização ou legalização das drogas nem a glamorização da maconha, mas sim o debate de uma proposta que tenta reforçar a criminalização do usuário.

“Inserir no artigo 5º (da Constituição), que consagra direitos inegociáveis, como as liberdades individuais e autonomia das pessoas, os direitos fundamentais, uma conduta de criminalização é flagrantemente inconstitucional e viola a própria Constituição, já que trata-se de uma cláusula pétrea. A flexibilização ou a alteração de cláusulas pétreas pode acontecer apenas para ampliação de direitos e não para reprimenda ou para restrição de algum direito”, esclareceu Sílvia.

Ela também apontou para o fato de a proposta afrontar o princípio da alteridade, segundo o qual ninguém pode ser punido por lesar a si mesmo. “Não é legítimo ao Estado criminalizar condutas que lesionam apenas o próprio agente”, explicou.

Sílvia afirmou ainda que a PEC é racista: “A guerra às drogas no Brasil tem cor e tem CEP, ela é feita para um processo de criminalização da população negra e da população mais pobre. A criminalização do consumo de drogas é uma política racista, os dados são claros e mostram que aplicação da lei não é igual para pessoas brancas e para pessoas negras”.

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O deputado Ricardo Salles (PL-SP), relator da PEC na CCJC, não teve nenhum pudor ao fazer a defesa ferrenha da criminalização dos usuários de drogas, inclusive zombando de todos os argumentos e estudos apresentados pelos convidados que se posicionaram contra a aprovação da proposta.

“A posição mais incoerente, absurda e geradora de todos esses problemas que nós temos hoje é a situação atual, em que quem vende é bandido e quem compra é vítima. Há um desincentivo a não comprar, pois não acontece nada”, afirmou. “É fácil de resolver, flagrou com droga, prende e acabou”, disse Salles, que é réu em processo sobre exportação de madeira ilegal.

Para Salles, não há nenhuma restrição para a Câmara dar andamento na PEC, e o mais adequado seria retirar do texto a distinção entre traficante e usuário. “Não tem pena alternativa à prisão coisa nenhuma, prendeu com carga ilícita é prisão para todo mundo, para quem vende e para quem compra”, lançou.

O discurso foi rebatido pelo deputado Chico Alencar (PSOL-RJ). Alencar argumentou que a questão das drogas é “eminentemente” de saúde pública. “A questão não é judicial, criminal, policial, de encarceramento ou da Constituição, é questão de políticas públicas de saúde”, afirmou.

“Tudo isso se dá no mercado capitalista transnacional de armas e drogas, é um grande negócio mundial”, observou Alencar. “A ineficácia da guerra às drogas está mais do que comprovado e nós temos que buscar outras alternativas, e essa PEC não traz outra alternativa.”

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O deputado Stélio Dener (Republicanos-RR), por sua vez, questionou o que pode ser feito na PEC para reparar as pessoas que são condenadas por crimes relacionados às drogas mesmo não sendo traficantes nem usuárias.

“Muitas vezes o irmão que usa contamina o irmão que não usa, mas não em relação à droga em si, mas em relação apenas ao parentesco. Pessoas que são colocadas no bojo de um processo judicial, às vezes, por que na sua casa tem uma balança ou é encontrado droga”, explicou o parlamentar, que já atuou como defensor público por 18 anos.

Dener também abordou o aspecto das pessoas que são apenas consumidoras de drogas mas que precisam vender as substâncias para poder comprar. “Essas penas devem ser iguais às do grande traficante? É o traficante que comercializa, não para usar, mas para se enriquecer”, argumentou.

O resto do debate na CCJC foi um verdadeiro show de horrores de falso moralismo e desinformação sobre maconha e drogas, a cargo dos deputados Osmar Terra (MDB-RS), Éder Maduro (PL-PA), Marcos Pollon (PL-MS), Alberto Neto (PL-AM), Eli Borges (PL-TO) e Otoni de Paula (MDB-RJ), das deputadas Bia Kicis (PL-DF), Julia Zanatta (PL-SC), Chris Tonietto (PL-RJ) e Caroline de Toni (PL-SC) e do senador Eduardo Girão (Novo-CE). Os parlamentares também atacaram o Supremo Tribunal Federal em razão do julgamento que pode descriminalizar o porte de cannabis para uso pessoal.

A PEC 45 trata-se de uma resposta política ao julgamento do STF, que analisa a constitucionalidade do artigo da lei de drogas que criminaliza o porte de substâncias para consumo próprio. O processo está com um placar de 5 a 3 pela inconstitucionalidade da criminalização do usuário de maconha, sendo que todos os ministros deram parecer favorável à fixação de uma quantidade limítrofe para diferenciar o consumo próprio do tráfico.

O porte de drogas para uso pessoal foi despenalizado pela lei 11.343/2006, que removeu a pena de prisão, prevendo punições alternativas, como a prestação de serviços à comunidade. O texto, no entanto, não definiu parâmetros objetivos para a diferenciação entre usuário e traficante, deixando a definição a cargo da subjetividade de policiais, promotores e juízes.

Essa discricionariedade resultou no encarceramento em massa de pessoas acusadas pelo crime de tráfico de drogas, em sua grande maioria jovens negros e pobres. A polícia não precisa de provas para legitimar a prisão de um indivíduo por tráfico, bastando o seu testemunho.

Acesse a enquete sobre a PEC das Drogas no portal da Câmara e vote contra a proposta, que tenta respaldar constitucionalmente a criminalização do usuário e o superencarceramento da população negra.

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Imagem em destaque: Mário Agra | Câmara dos Deputados.

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