Negros têm casas invadidas sem mandado duas vezes mais que brancos, revela pesquisa

Ilustração que mostra uma pessoa negra agachada, com as mãos no rosto, um pano branco no colo, cicatrizes de açoites nas costas e uma corrente presas à perna, que está amarrada a uma favela que se vê ao fundo, em nanquim branco e preto, onde também pode-se ver um helicóptero da policia que sobrevoa. Drogas.

À medida que a população brasileira é composta por 57% de pessoas negras, entre os réus processados por tráfico de drogas, 68% são negros

Entre os réus por tráfico de drogas que tiveram suas residências invadidas pela polícia sem mandado judicial, o número de negros é duas vezes superior ao de brancos. A proporção é semelhante à dos processados em geral pelo crime: 46,2% negros e 21,2% brancos.

Isso é que revela o estudo “A questão racial nos processos criminais por tráfico de drogas nos tribunais estaduais de justiça comum: uma análise exploratória”, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em outubro do ano passado.

O levantamento da pesquisa é oriundo de dados do relatório “Perfil do processado e produção de provas em ações criminais por tráfico de drogas”, produzido em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (Senad) do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

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Segundo os dados da pesquisa, a maioria dos réus processados por tráfico de drogas tem até 30 anos (72%) e possui baixa escolaridade (67% não concluiu o ciclo de educação básica). Jovens negros representam metade dos réus, indicando uma predominância da criminalização por tráfico nessa parcela da população.

O estudo mostra que há 2,5 vezes mais chance de encontrar jovens negros do que jovens brancos entre os processados por tráfico de drogas em todo o país. Em contraponto, entre os réus maiores de 30 anos há 1,4 vez mais chance de encontrar pessoas negras do que pessoas brancas.

Em relação à motivação das abordagens, de acordo com o relato de policiais, o estudo mostra que réus negros são mais frequentemente abordados pela polícia com base em “alegada suspeita” durante patrulhamento ostensivo em espaços públicos (51,3%) ou em denúncia anônima (45,6%).

Uma das descobertas da pesquisa foi o fato de as invasões policiais sem mandado judicial ocorrerem duas vezes mais em domicílios de pessoas negras (46,1%) do que em residências de pessoas brancas (22,4%). Os números se comparam aos dos réus processados em geral pelo crime de tráfico de drogas.

Já nos casos em que houve entrada em domicílio com mandado judicial, a proporção de réus brancos e negros difere significativamente em relação aos réus processados em geral. O levantamento aponta uma maior representação de réus brancos (30,2%) e uma menor representação de réus negros (34,7%) nesses casos.

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A técnica de desenvolvimento e administração do Ipea, Milena Soares, uma das autoras do estudo, avalia que “a nota qualifique o debate público sobre o racismo estrutural e sensibilize a sociedade para a necessidade de políticas que busquem remediar o viés racial da criminalização de sujeitos por crimes de drogas”, segundo um comunicado à imprensa.

Para a pesquisadora, os resultados apontam para a necessidade de uma “mudança no foco de policiamento ostensivo para trabalho de investigação policial, maior rigor do judiciário na convalidação de entradas em domicílio sem mandado e critérios objetivos de quantidade de cannabis e cocaína, para a presunção de porte para uso próprio”, de forma a minimizar o viés racial na aplicação de pena da Lei de Drogas.

As pesquisadoras também sinalizam a importância de ações voltadas a atores do sistema de justiça, como promotores e juízes, a fim de evidenciar como as atuações validam e perpetuam as práticas abusivas de outras instituições, contribuindo para hierarquias raciais na aplicação da lei de drogas e para o cenário de encarceramento desproporcional da população negra no Brasil.

O estudo “Perfil do processado e produção de provas nas ações criminais por tráfico de drogas” cobriu mais de 5 mil autos processuais por tráfico de drogas sentenciados em 2019 no âmbito dos Tribunais de Justiça estaduais e dos Tribunais Regionais Federais. A nota técnica que aprofundou os dados comparou o perfil racial dos réus ao perfil racial da população em geral, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) de 2019 e da população custodiada no sistema penitenciário (Depen, 2019).

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Racismo institucional

A pesquisa é mais uma evidência da real intenção do Estado em dar manutenção na “guerra às drogas”: a institucionalização do racismo. Os verdadeiros traficantes, como senadores donos de helicópteros e defensores ferrenhos do proibicionismo, ricos e brancos, lucram com a proibição à custa da criminalização da população negra e periférica.

Uma pesquisa divulgada em novembro pela Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas revelou que a maioria das pessoas presas por tráfico de drogas no estado de São Paulo são jovens, negras, pobres e sem antecedentes criminais.

Os dados mostram que a maior parte das pessoas acusadas por tráfico (51%) não possuíam nenhum antecedente criminal antes de serem presas e que 54% dos processos estão relacionados a pessoas negras — número que pode ser muito maior, uma vez que as pesquisadoras identificaram processos onde o escrivão policial registrou a cor/raça como “branca” apesar do acusado se autodeclarar “pardo” durante o atendimento no Instituto Médico Legal.

O racismo na aplicação da Lei de Drogas fica ainda mais evidente considerando que, segundo dados levantados pela pesquisa junto ao Censo Demográfico de 2010, 37% da população da cidade de São Paulo se autodeclara negra, enquanto mais da metade das pessoas presas por tráfico no Estado são negras.

“A história dos processos de consolidação da política de drogas no Brasil tem suas raízes na formação de uma sociedade colonial e escravocrata. Frutos dessa história produziram a atual Guerra às Drogas, marcada por políticas repressivas, violentas e punitivistas direcionadas a grupos sociais pertencentes às populações negras e aos territórios periféricos, gerando encarceramento e o aprofundamento das desigualdades sociorraciais”, afirma o documento.

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Imagem de capa: Carlos Latuff.

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