Especialistas destacam benefícios medicinais da cannabis em debate na Assembleia de Minas Gerais

cannabis

Profissionais da saúde e outras áreas defendem maior acesso aos medicamentos derivados da maconha

Associações de pacientes de cannabis tratam 86.776 pessoas, com idades entre seis meses e 102 anos e com uso de mais de 205 mil frascos de óleo de maconha por ano. As enfermidades mais frequentemente tratadas são os transtornos mentais e comportamentais, correspondendo a 16,7% dos casos, seguidos por condições como epilepsia, autismo, TDAH e paralisia cerebral (9,1%), Alzheimer e outras demências (5,5%) e fibromialgia (5,2%). Esses tratamentos são prescritos por mais de 3.400 médicos em todo o país.

Os dados são referentes ao mês de abril e pertencem ao relatório Panorama Nacional do Setor Associativo da Cannabis Medicinal, apresentado pelo médico Leandro Cruz Ramires da Silva no debate público “Cannabis e ciência: evidências sobre o uso terapêutico e seus meios de acesso”. O evento foi realizado pela Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia da Assembleia Legislativa de Minas Gerais na última sexta-feira (26), e contou com a presença de médicos, juristas, pesquisadores e associações de pacientes para discutir sobre a importância do incentivo à pesquisa para o desenvolvimento do uso medicinal dos produtos derivados da maconha.

Diretor médico-científico da Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal (Ama+me), Leandro Silva prescreve cannabis desde 2014 e cultiva a planta com salvo-conduto para o tratamento de seu filho, que é portador da síndrome de Dravet. “A vida dele mudou. Ele tinha várias convulsões ao dia, hoje fica até três meses sem crise. E nunca mais internou. Três anos depois, já não tomava nenhum alopático”, relatou o médico, segundo nota da ALMG. Ele também é coautor de um estudo que confirma o benefício do extrato de maconha para a melhora dos sintomas em pacientes com autismo.

Leia também: De ansiedade a Burnout: Veja casos em que a Justiça autorizou o cultivo de maconha

Leandro Silva criticou a legislação brasileira por impor restrições à comercialização interna da cannabis, mesmo aquela com baixo teor de THC (tetraidrocanabinol), a substância medicinal mais conhecida da planta. No mundo, segundo ele, o produto com baixo THC sequer precisa de receita para ser vendido.

O médico também abordou o crescimento das importações e da judicialização do acesso ao tratamento à base de cannabis. Ele citou o caso de São Paulo, que gastou mais de R$ 25 milhões, em um período de dez meses, para atender 843 pacientes. “Se esse montante fosse usado nas associações, todas sem fins lucrativos, poderíamos atender 25 vezes mais pessoas”, comparou, segundo nota da ALMG.

A médica hematologista Cláudia Solmucci, por sua vez, listou várias áreas da medicina que já contabilizam resultados promissores nos tratamentos com cannabis, como a ginecologia, a odontologia e a dependência química. Ela ainda citou o lúpus, que tem tratamento com alto custo através da alopatia. “Certamente vamos lidar com o lobby da indústria farmacêutica”, sublinhou.

Para a médica Daniela Arruda de Barros, também pesquisadora em cannabis medicinal, outro tema que merece destaque é o potencial econômico da maconha. Segundo ela, o cânhamo, tipo de cannabis com baixa concentração de THC, é uma ótima opção para melhorar a terra nas monoculturas.

O plantio de novas culturas como o cânhamo proporciona benefícios para o solo, como o aumento da fertilidade, além de um melhor controle de doenças e flexibilidade agrícola. A cultura da maconha, particularmente, ainda requer menores necessidades de insumos, resultando numa cadeia de abastecimento mais sustentável.

Leia mais: Ração para galinhas com sementes de cannabis é aprovada por agência dos EUA

A primeira mesa do debate foi encerrada com o relato de Cleuza Lendário, mãe de Samuca, paciente tratado com cannabis, e referência nacional em cultivo e produção de óleo de maconha. Ela comoveu todos os presentes com seu testemunho sobre sua luta e a do marido para garantir o tratamento do filho, criança atípica que teve o cérebro comprometido por uma encefalite viral por herpes e, posteriormente, foi diagnosticada com autismo.

Samuca tinha até 60 convulsões e tomava 18 medicamentos em um só dia, até que dona Cleuza teve acesso a informações sobre o uso da cannabis e passou a tratar o filho com a terapia canábica. Inicialmente, ela chegou a pagar R$ 1.200 por uma seringa de óleo oriundo de uma plantação nacional. Mas os recursos da família não davam para custear o tratamento e a mãe começou a plantar maconha no quintal de casa.

Ela chegou a conseguir um habeas corpus para garantir o cultivo, mas um mandado de busca e apreensão, em setembro do ano passado, em Planura (MG), resultou na destruição da plantação. O marido chegou a ser preso, ela responde a processo e houve ameaça de Samuca ser levado ao Conselho Tutelar. No dia 2 de fevereiro deste ano, Samuel morreu, aos 17 anos.

“Engasgou, broncoaspirou e por segundos morreu nos meus pés, por falta de recursos do Estado e do único remédio que controlava meu filho. Venci o preconceito de uma igreja e de uma sociedade, e tinha um direito por lei, que me foi tirado. Podemos ser presos, mas o pior foi ter perdido meu filho”, declarou dona Cleuza.

Leia mais: Frente parlamentar da cannabis em Pernambuco defende produção local

Embora haja alguma vanguarda na ciência mineira, no campo jurídico o Estado estaria atrasado. Como observou Lourdes Machado, representante do Conselho Estadual de Saúde, enquanto vários estados brasileiros já aprovaram legislações para oferta dos medicamentos à base de maconha pelo SUS, Minas Gerais ainda não avançou no tema.

Nesse sentido, a deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT), autora do requerimento para a realização do debate público, salientou que já está em tramitação o Projeto de Lei 3.274/21, que torna obrigatório o fornecimento desses medicamentos para condições debilitantes. Segundo a parlamentar, pretende-se que o debate contribua para que a matéria seja apreciada de forma célere no Legislativo mineiro.

Enquanto isso, os remédios derivados da cannabis só estão disponíveis para quem consegue pagar. De acordo com Lourdes Machado, o custo fica em torno de R$ 2 ou R$ 3 mil mensais. Outro caminho é a judicialização para que o Estado custeie o tratamento. O promotor Luciano Moreira de Oliveira, do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa da Saúde (CAO-Saúde), explicou que têm chegado ao Ministério Público demandas tanto para liberação de produção domiciliar quanto de receituário para tratamento de autismo.

O deputado Roberto Andrade (Patriota) e a deputada Ione Pinheiro (União) também estiveram presentes na mesa de abertura. Eles são coautores do requerimento que solicitou o debate público e ressaltaram a importância de se vencer os preconceitos para uma discussão baseada em evidências científicas.

Leia também: Pacientes observam melhora na qualidade de vida após tratamento com maconha

Walter Moraes Júnior, promotor de justiça do Juizado Especial Criminal de Belo Horizonte, afirmou que mesmo a Lei de Drogas prevê a não criminalização da produção para fins medicinais de substâncias derivadas da cannabis. Ele também citou a portaria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que prevê a prescrição por médicos de medicamentos com essas substâncias.

O promotor acrescentou que leis estaduais podem complementar a lei federal sobre o uso medicinal da cannabis, como ocorreu no estado de São Paulo. “A aprovação de uma política estadual de distribuição de remédio à base dessa planta é importante para universalizar o uso”, ponderou. Isso ajudaria a resolver um problema comum, que é a exclusão das famílias de baixa renda na luta pelo tratamento, visto que o custo dos óleos vendidos nas farmácias ou dos medicamentos com importação autorizada pela Anvisa é alto.

Davi Cardoso, juiz da Vara da Fazenda Pública de Ribeirão das Neves e membro do coletivo Repensando a Guerra às Drogas, observou que a discussão sobre substâncias no Judiciário já evoluiu consideravelmente. Segundo ele, Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça estão discutindo o tema, incluindo o uso medicinal da cannabis. O magistrado avaliou que a resistência a tal debate revelaria uma estupidez enorme: “Um dos medicamentos mais usados, a morfina, é feito da papoula, matéria-prima também do ópio e da heroína. E não se fala em proibir a morfina”.

Na mesa que abordou a importância das pesquisas acadêmicas sobre a cannabis, o professor Derly José Silva, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), e a pesquisadora Mychelle Monteiro, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), apresentaram trabalhos em curso envolvendo os derivados da maconha, segundo informou o portal da ALMG.

A pesquisa de Derly consiste na criação de um banco ativo de germoplasma da cannabis, ou seja, no acúmulo e caracterização de variabilidades genéticas da planta em Minas Gerais, com produção confiável e estável. E todo esse esforço para viabilizar o estudo da maconha, destacou o professor, está centrado na concepção de que a cannabis não pode ser reduzida ao uso adulto, motivo de tanta controvérsia por conta da ignorância e do preconceito.

Segundo ele, o corpo humano possui dezenas de receptores de canabinoides, ativados por substâncias presentes na maconha. Esse fator aponta para benefícios na saúde do consumo de derivados da cannabis.

Leia: Estudo mostra como interação entre compostos da maconha contribui para efeito terapêutico

Além dos seus efeitos terapêuticos, a cannabis é reconhecida por ter uma ampla gama de aplicações nas indústrias têxtil, alimentícia, construção, cuidados com animais, cuidados pessoais, farmacêutica, tintas, lubrificantes, bioplásticos, biocombustíveis e entre outras.

A pesquisadora Mychelle Monteiro apresentou o trabalho do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS), da Fiocruz, que trabalha em parceria com a Anvisa na inspeção e monitoramento de produtos derivados da maconha no Brasil. O instituto está desenvolvendo metodologias para o controle de qualidade desses produtos, atualmente concentradas nos dois canabinoides mais conhecidos, o THC e o CBD. Atualmente, existe apenas um medicamento com essas substâncias registrado no país, com um valor de mercado que chega a mais de R$ 4 mil.

O alto preço para aquisição dessas substâncias é justamente um dos maiores desafios para as pesquisas. Um frasco com seis canabinoides encomendado pelo INCQS custou quase R$ 20 mil. Outro dificultador é o tempo de espera para a entrega das substâncias, de meses, o que pode inviabilizar os estudos.

A deputada Andreia de Jesus (PT) falou que as pessoas negras são tradicionalmente criminalizadas por oferecerem à sociedade uma planta milenar cobiçada por todo o mundo. Nesse sentido, refletiu que “pensar na legalização da maconha, garantindo o controle social, é pensar na reparação histórica desse povo negro, que está no sistema prisional”.

Ao final das discussões, a deputada Beatriz Cerqueira propôs a criação de um grupo de trabalho com os participantes do debate para continuar a discussão, especialmente no sentido de fornecer contribuições para o projeto de lei sobre a temática no estado de Minas Gerais.

Veja também:

STJ: Cultivo de cannabis para fins medicinais é defendido por expositores em audiência pública

Fotografia de capa: Camila Morgan | Flickr.

Deixe seu comentário
Assine a nossa newsletter e receba as melhores matérias diretamente no seu email!