Violência provocada pelo Estado na guerra às drogas adoece e impede acesso a serviços de saúde

Ilustração mostra uma mulher sentada e com um manguito no braço, ao lado de um homem vestido com jaleco branco que observa o esfigmomanômetro ser estilhaçado por uma bala, que ricocheteia em direção ao teto da sala, e dois policiais que atiram com arma de fogo no lado de fora e são vistos pela janela. Crédito: Laerte.

As proporções de pessoas com hipertensão arterial, insônia prolongada, ansiedade e depressão são maiores nas comunidades do Rio de Janeiro mais expostas a tiroteios com presença de agentes de segurança em comparação às comunidades não afetadas por esses episódios, revela pesquisa inédita

Moradores de comunidades mais expostas à violência armada provocada por agentes de segurança são impedidos de acessar os serviços de saúde e podem desenvolver doenças físicas e transtornos mentais devido a esses episódios. Isso é o que revela a pesquisa Saúde na Linha de Tiro: impactos da guerra às drogas sobre a saúde no Rio de Janeiro, lançada nessa quarta (9) pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC). O estudo mostra, também, que o Estado gasta ainda mais dinheiro público para tratar doenças e transtornos que ele mesmo provoca.

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“A guerra às drogas afeta toda a sociedade brasileira. Mas, são os moradores de comunidades, pobres e negros que mais adoecem com essa escolha política do Estado. Com essa pesquisa, queremos chamar atenção da sociedade para essa realidade”, afirma a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do CESeC.

Saúde na Linha de Tiro é a terceira etapa do projeto Drogas: Quanto Custa Proibir, que discute os impactos da guerra às drogas, trazendo análises inéditas em quatro áreas específicas: segurança e justiça, educação, saúde e território. A primeira fase do projeto, lançada em março de 2021 com o relatório Um Tiro no Pé, revelou os impactos do proibicionismo no orçamento do sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro e São Paulo. A segunda etapa (Tiros no Futuro), divulgada em fevereiro de 2022, apresentou dados sobre o impacto da política de proibição no desempenho escolar dos alunos da rede pública municipal do Rio de Janeiro.

Para chegar aos resultados, em 2022 a pesquisa entrevistou 1.500 moradores maiores de 18 anos, de seis comunidades cariocas semelhantes do ponto de vista socioeconômico, mas expostas a diferentes níveis de violência armada. As comunidades foram divididas em dois grupos: três delas frequentemente afetadas por tiroteios com a presença de agentes de segurança em 2019 e outras três que não são atingidas pelo mesmo tipo de violência, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado. Foram considerados os tiroteios registrados a um raio de até 400 metros das unidades de saúde desses locais.

Entre as mais afetadas estão: Nova Holanda, uma das comunidades do complexo da Maré, CHP-2, do complexo de Manguinhos, ambas na Zona Norte da cidade, e Vidigal, na Zona Sul. As três comunidades que não registraram tiroteios em 2019 foram Parque Proletário dos Bancários, na Ilha do Governador, Parque Conquista, no bairro do Caju, ambas na Zona Norte do Rio de Janeiro, e Jardim Moriçaba, na Zona Oeste.

A publicação Saúde na Linha de Tiro apresenta uma série histórica dos tiroteios com a presença de agentes de segurança nas comunidades selecionadas entre 2017 e 2022. Esses dados revelam que o grau de exposição à violência nas comunidades analisadas não se alterou profundamente ao longo dos anos, indicando que pode haver um efeito acumulado dessa violência no estado de saúde dos moradores.

Principais destaques da pesquisa

Os números demonstram que a rotina de medo, a insegurança e as incertezas provocadas pelas constantes operações policiais nas comunidades cariocas têm impactos imediatos e causam prejuízos à saúde física e mental dos moradores no longo prazo.

As proporções de adultos com hipertensão arterial, insônia prolongada, ansiedade e depressão são maiores nas comunidades onde esses episódios se repetem sistematicamente se comparadas a outras áreas sem tiroteios constantes.

Cerca de 51% dos moradores das comunidades mais expostas a tiroteios com presença de agentes de segurança sofrem com algumas dessas condições, em comparação a 35,9% dos moradores das comunidades não afetadas por esses casos.

Dos moradores das comunidades mais afetadas por tiroteios, 29,6% relataram sintomas típicos de depressão em comparação aos 15,7% dos moradores das demais comunidades.

Além disso, moradores das comunidades com mais tiroteios têm um risco 42% maior de desenvolver hipertensão e o dobro da chance de sofrer com sintomas típicos de ansiedade em relação aos moradores das outras três comunidades analisadas, onde há menor incidência desses episódios.

Outra condição clínica associada à violência armada é a insônia prolongada. A pesquisa estima que a probabilidade de ter insônia é 73% maior para pessoas que moram em comunidades expostas à violência armada.

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A violência provocada por agentes do Estado também interfere na oferta dos serviços de saúde, resultando no fechamento de unidades, na ausência de profissionais e na impossibilidade de deslocamento até os serviços. Nas comunidades mais expostas à violência do Estado, 59,5% das pessoas disseram que a unidade de saúde já havia sido fechada em algum momento, 31,6% souberam de algum episódio em que profissionais de saúde deixaram de trabalhar e 26,5% informaram que já haviam sido obrigados a adiar a procura por um serviço de saúde em função dos conflitos armados. Nas comunidades que não foram afetadas por esses episódios, esses percentuais são consideravelmente menores, como pode ser visto no gráfico abaixo.

Cerca de 30% dos moradores de comunidades submetidas à violência armada relataram efeitos negativos imediatos como sudorese, falta de sono, tremor e falta de ar durante episódios de tiroteio, e 43% dessas pessoas relataram sentir o coração acelerado ao ouvir tiroteios próximos às residências.

Equivalência monetária das perdas

A pesquisa do Drogas: Quanto Custa Proibir mensura uma parte dos prejuízos econômicos da guerra às drogas decorrentes do adoecimento de pessoas e da interrupção do funcionamento dos serviços de saúde. No grupo com as três comunidades mais afetadas pelos tiroteios envolvendo agentes estatais, 6,8% dos adultos ficaram impedidos, por pelo menos um dia, de realizar atividades rotineiras, como estudar e trabalhar, por questões de saúde, enquanto nas demais comunidades 4,8% dos entrevistados relataram o mesmo.

A não realização dessas atividades gerou uma perda de R$ 1.391.209 em um ano para o conjunto dos moradores das três comunidades mais expostas à violência armada provocada pelo Estado.

O custo das interrupções de atendimento nas unidades básicas de saúde

Considerando que as unidades de saúde das comunidades mais expostas a tiroteios provocados por agentes de segurança não possam funcionar aproximadamente três dias a mais por ano em comparação às unidades das outras comunidades, o custo anual desses fechamentos para os cofres públicos e para a sociedade é de R$ 316.963. Em 2022, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, foram contabilizados 445 fechamentos de unidades de saúde em função da violência.

O aumento do adoecimento nas comunidades mais afetadas pela violência provocada por agentes de segurança acarreta um custo adicional para o Estado. O custo anual do tratamento de paciente com hipertensão arterial e depressão pode variar entre R$ 69.000 e R$ 95.000, em valores de 2022.

“O contexto da violência armada no Rio de Janeiro tem uma singularidade em relação às outras cidades no Brasil. Nossos dados mostram que a guerra às drogas impede que as pessoas tenham acesso a um direito básico e universal como a saúde. Compreender os impactos dessa violência é essencial para a formulação de políticas que possam transformar essa realidade”, reflete Mariana Siracusa, coordenadora da pesquisa.

Para mais informações sobre o projeto Drogas: Quanto Custa Proibir, clique aqui.

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Ilustração de capa: Laerte.

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