Erik Torquato responde: como o julgamento do STF impacta usuários e cultivadores?

O que muda, na prática, caso haja a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal pelo STF? Quem já votou e quem falta votar? Quais são as perspectivas em relação a cada ministro que ainda não votou? Por quanto tempo o julgamento pode se arrastar? Quando a decisão passa a valer? Confira, a seguir, as respostas do advogado Erik Torquato

O julgamento mais esperado dos últimos anos será retomado! Foi uma surpresa a notícia da retomada do julgamento na próxima quarta-feira (24)* do Recurso Extraordinário 635.659, em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF), que poderá (ou não) descriminalizar o usuário de cannabis e outras substâncias no país.

*atualização: apesar de pautado, o julgamento não foi retomado na última quarta. A nova data é 1º de junho.

Como todo tema jurídico gera grande quantidade de dúvidas, o advogado Erik Torquato respondeu algumas das principais perguntas que chegaram na Smoke Buddies e em seu perfil no Instagram (@eriktorquatoadvogado). Confira as respostas a seguir:

O julgamento do RE 635.659 pelo STF é apenas sobre o porte e uso de maconha?

A pergunta é interessante pois tem dividido muito quem é a favor só da maconha e quem é a favor da descriminalização em relação a todas as drogas. Então, sendo direto: não, o julgamento não é só sobre maconha. E a meu ver, ainda bem que não é. Na verdade, o RE 635.659 é sobre a conduta de todos os usuários que decidem usar substâncias proibidas, sem que haja distinção. Quem inaugurou a tese da distinção da maconha em relação a outras drogas foi o Ministro Luiz Roberto Barroso, que inclusive avançou na ideia de quantidade de 20g por usuário ou seis plantas. Porém, a discussão ainda vai longe e não está limitada a este posicionamento do ministro citado, devendo ser discutida também a tese do relator (Gilmar Mendes) de descriminalização da conduta de usuários de qualquer droga e eventuais outras teses que aparecerem ao longo do julgamento.

Para cultivadores, o que este julgamento pode acarretar?

Não temos como prever nada de forma exata. Porém, sei que a grande preocupação de quem cultiva é de a declaração da inconstitucionalidade do artigo 28 também recair sobre o parágrafo primeiro, que fala sobre a conduta de cultivar para consumo próprio. Se o 28 for declarado inconstitucional, a meu ver, seus parágrafos também serão assim declarados. E aí, então, o que sobraria ao cultivador? Na perspectiva positiva, a liberdade de plantar sem dever nada para a justiça ou, no máximo, ter uma quantidade máxima de plantas que podem ser cultivadas; na perspectiva negativa, acredito que poderia ocorrer uma maior facilidade de injusto enquadramento no artigo 33, §1º, inciso II da Lei de Drogas, que versa sobre cultivo para tráfico.

Quem já votou e quem falta votar?

O primeiro a votar foi o ministro Gilmar Mendes, relator do recurso, tendo sido favorável à declaração de inconstitucionalidade do artigo 28, sem fazer qualquer distinção quanto à substância usada. O voto seguinte, também favorável à inconstitucionalidade, foi do ministro Luiz Roberto Barroso, que votou pela descriminalização apenas de quem consome maconha, tendo incluído a ideia de descriminalizar cultivo de até seis plantas fêmeas. O próximo a votar foi o ministro Edson Facchin, que acompanhou o voto do ministro Barroso. Então, em 2015, dos seis votos necessários pela declaração de inconstitucionalidade, foram alcançados três. Agendado o julgamento para esta semana, ainda faltam votar (nesta ordem): Alexandre de Moraes, André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Rosa Weber, atual presidente do STF.

Quais são as perspectivas em relação a cada ministro que ainda não votou?

O STF é formado por 11 ministros. Sendo assim, faltariam 8 votos em relação ao RE 635.659. Acontece que o STF ainda está com seu quadro de ministros com uma vaga aberta em razão da aposentadoria do Ministro Lewandovisk, então, só há no momento 10 ministros. O esperado é que tenhamos pelo menos mais 7 votos a serem apresentados nesse julgamento.

O próximo a votar será o ministro Alexandre de Moraes. Quanto a ele, a partir do seu histórico de posicionamento a respeito do tema, nada de muito animador podemos esperar. Enquanto ministro da Justiça do Governo Temer, protagonizou uma cena em que aparecia com um facão e botas de borracha destruindo uma plantação de maconha no Paraguai, sob justificativa de combate ao tráfico. Assim, se tomarmos tal posicionamento como parâmetro, há o sério risco de o facão estar ainda mais amolado e, agora, enquanto ministro do STF, vir com força cortando a onda de todos nós que desejamos o fim dessa criminalização injusta de liberdades.

Dentre os outros seis votos, tenho por convicção que os ministros Nunes Marques e André Mendonça, nomeados pelo ex-presidente Bolsonaro, irão se manifestar contrários à declaração de inconstitucionalidade do artigo 28. Acredito também que Fux será conservador e votará contra.

Se todos estes quatro citados realmente votarem de forma desfavorável ao recurso, teríamos um placar de 4 x 3 dentre 10 votos disponíveis. Restariam então para o desempate os votos dos Ministros Dias Toffoli, Rosa Weber e Carmem Lúcia.

Ousaria dizer que a decisão toda está muito voltada para o voto de Dias Toffoli. Acredito muito que Rosa Weber e Carmem Lúcia irão votar seguindo o relator Gilmar Mendes, deixando nossa vantagem em 5×3 no placar, nos restando apenas um voto para alcançar a maioria necessária para declarar a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas.

Nesse cenário, a dúvida é cruel: Dias Toffoli já se mostrou em cima do muro por diversas oportunidades em relação ao tema. Inclusive, tomando-se por base o julgamento da revista íntima vexatória, ele se alinhou com a ala mais conservadora dos ministros e manteve o entendimento da possibilidade das revistas íntimas, acompanhado por Fux.

Ou seja, o cenário nesse caso é muito duvidoso e só o tempo nos dirá como o Toffoli irá votar, pois o Fux é quase certo que irá votar contra o Recurso, de maneira que, no atual cenário, ao que tudo indica, estamos nas mãos do Toffoli. Essa é minha leitura particular que só o tempo dirá se estou certo. Aguardemos.

Por quanto tempo este julgamento ainda pode se arrastar?

Não é possível prever com exatidão quanto tempo ainda poderá demorar este julgamento. Até pouco tempo atrás, os pedidos de vistas poderiam durar anos sem qualquer previsão de retomada do julgamento. No entanto, a partir da última resolução publicada pelo STF, no fim de 2022, há determinação de que os pedidos de vistas tenham como prazo máximo 90 dias e, ultrapassado este prazo, os demais ministros ficam automaticamente liberados para também registrarem seus votos.

Ainda que haja esta nova previsão, teremos que ver como realmente funcionará (pois uma coisa é a norma, outra a realidade). Sendo assim, é impossível afirmarmos em quanto tempo esse processo chegará ao final, mas há uma perspectiva mais positiva de que o processo vai seguir um rumo em vez de ficar parado de forma indefinida.

A decisão passa a valer assim que se atinge a maioria de votos ou só depois que todos os ministros votarem?

Antes de qualquer efeito prático, todos os ministros devem votar. E até o fim do julgamento, os ministros podem mudar seus votos até o último momento. Além disso, qualquer decisão só valerá após a prolação do resultado pela Presidente do STF e devida publicação em Diário Oficial. Ou seja, não basta atingirmos maioria (6 votos), é necessário que o julgamento finalize para que alguma mudança real aconteça.

O que muda, na prática, caso haja a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal?

Atualmente, o usuário, apesar de não poder ser preso (pois já houve a despenalização da conduta), ainda pode ser criminalizado, ter penas alternativas à prisão e ter seu histórico criminal marcado. Se o artigo 28 cair, a conduta do usuário será entendida como “atípica”, ou seja, não criminosa. Uma das melhores consequências é que fichas criminais serão zeradas caso só haja este tipo de anotação.

Apesar de tudo, isto não significará que os usuários poderão ser totalmente livres para usar droga como se fosse Coca-Cola, em qualquer lugar ou circunstância. Isto porque muito provavelmente serão estabelecidas sanções civis e administrativas para dificultar a vida do usuário, o que poderá servir para reforçar estigmas de preconceitos sociais sobre as pessoas.

Também tenho a preocupação com uma possível “onda de revanche do Estado”, que, não podendo mais criminalizar o usuário, o enquadrará (de forma ainda mais injusta) em condutas piores, como o tráfico.

O que é certo é que o julgamento está em marcha, mas ainda deve ir longe. Então todas estas conjecturas positivas ou negativas podem ser mudadas a qualquer momento. Só o tempo dirá se estamos ou não mais perto da almejada liberdade. Até lá, o importante é continuar na luta e usar o conhecimento como principal arma.

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Sobre Erik Torquato

Advogado criminalista e ativista pelo fim da guerra às drogas. Membro da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas - Rede Reforma. Conselheiro do Núcleo de Álcool, Drogas e Saúde Mental da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP. Co-fundador da RENCA. Militante da Marcha da Maconha. (11) 97412-0420. E-mail eriktorquato.adv@gmail.com Tel: 21-97234-1865 / e-mail eriktorquato.adv@gmail.com
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