Com a decisão do STJ, o que muda na luta pelo direito de plantar?

Em decisão unânime e inédita, os ministros da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concederam na tarde de terça (14) salvo-conduto para o cultivo de maconha com finalidade terapêutica a três pessoas. A vitória do direito à saúde pelo autocultivo foi comemorada por quem se engaja na causa, mas por quê? Nesta coluna, o advogado Erik Torquato explica tudo o que você precisa saber sobre os reflexos da decisão do STJ, confira

Com a nova decisão do STJ, o que muda, na prática, na luta pelo direito de plantar?

Conforme noticiado aqui na Smoke Buddies, no último dia 14, os ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concederam, em decisão unânime, salvo-conduto para o cultivo de maconha com finalidade terapêutica a três pessoas.

Esta decisão está sendo noticiada como histórica pois abre precedente favorável à concessão de Habeas Corpus para o plantio de cannabis para uso medicinal em todos os outros Tribunais, pois reconhece o HC como caminho para buscar proteção jurídica e ainda que quem planta para cuidar da própria saúde não é criminoso.

A notícia foi muito espalhada por aí, mas é importante também refletir: na prática, o que muda na luta pelo direito de plantar? Indo direto ao ponto: na prática, na vida das pessoas em geral, o impacto dessa decisão vai demorar um pouco para ser percebido. O medo de plantar continuará existindo, o risco de prisão ainda será real, mas já não estamos no mesmo lugar nesta busca de segurança via Judiciário.

Isto por que, do ponto de vista da rotina do Poder Judiciário, esta decisão irá impactar diretamente nos trabalhos de quem opera o Direito Penal em todo o país pois as teses de defesa serão reforçadas com essa nova decisão e os juízes terão à disposição esse novo paradigma para fundamentar suas decisões.

Mas, afinal de contas, o que é o STJ e por que essa decisão é tão relevante em relação a outras decisões também sobre HC?

Bom, STJ — Superior Tribunal de Justiça — é o Tribunal da Cidadania. É ele o responsável por julgar demandas vindas dos tribunais estaduais e federais dos estados que questionem a aplicação de uma lei federal. Ou seja, é a instância nacional de julgamento após a demanda passar pela segunda instância nos estados. O STJ conta com duas turmas de ministros com competência para julgar demandas de natureza penal: são as QUINTA e SEXTA Turmas de Ministros do STJ.

Em matéria de HC para cultivo, o STJ apenas contava com uma orientação jurisprudencial, vinda da QUINTA Turma, que era muito ruim! Esta decisão dizia que o HC não era via adequada para pleitear o direito de não ser preso por cultivar o próprio remédio pois afirmava, num resumo muito conciso, que o caminho era a via cível com pedido de autorização à Anvisa. Ocorre que a Anvisa já havia se manifestado por várias vezes no sentido de não ser competente para emitir tal autorização. Ou seja, a decisão da QUINTA Turma não dava solução viável e não encarava a questão do risco penal sofrido pelo cultivador.

Então veio a decisão do dia 14, proveniente da SEXTA Turma do STJ, que reconheceu que o Habeas Corpus é via adequada para afastar o risco de prisão do cultivador medicinal e foi além afirmando que a conduta de quem cultiva e tem o uso para tratamento de saúde comprovado não deve ser vista como crime. Essa decisão só vale diretamente para os três pacientes representados nos processos julgados, porém o peso da decisão é gigante para que decisões negativas nos estados do Brasil sejam revertidas e a luta pelo direito de plantar se fortaleça, via Judiciário.

Então, toda comemoração é por conta de uma nova jurisprudência que não necessariamente vale para todos?

Em primeiro momento, quando vemos a notícia que a decisão é voltada para apenas três pessoas, a ideia de que “não muda nada” pode parecer fazer sentido. Entretanto, é importantíssimo perceber que este pensamento não faz sentido no contexto da construção jurisprudencial, que é o que molda como os julgamentos acontecem.

Com esse novo precedente vindo da Sexta Turma do STJ, o cenário ficou mais favorável para todos que se veem sob o risco de criminalização por plantar para cuidar da própria saúde, tendo Habeas Corpus ou não. É também importante notar que esta decisão do STJ contou com apoio importante do Ministério Público Federal, que na sessão se manifestou favorável ao tema decidido — e isso também é uma grande evolução!

A decisão traz para nós um novo ponto de partida. O ponto de que, sim, cabe Habeas Corpus em favor do cultivo doméstico e, sim, quem planta para manter um tratamento de saúde não é criminoso. Em alguns estados, isto pode parecer já uma banalidade, por outro lado, representa uma esperança enorme para estados que contam com posicionamentos absolutamente contrários ao direito de cultivar.

Esse entendimento poderá servir, inclusive, para pautar as defesas criminais daqueles growers que, apesar de terem receitas e laudos médicos, ainda estão sendo processados criminalmente por serem enquadrados como traficantes. E não pensem que são poucos nesta situação: são muitos, inclusive há parte significativa que aguarda preso por julgamento!

Eis o tamanho da vitória!

Com essa decisão do STJ, agora ficou mais fácil conseguir um Habeas Corpus para cultivo?

Não diria mais fácil. Nunca foi fácil. Eu diria que agora ficou mais difícil de ser negado, porém, já ressalto que ainda assim os HCs poderão ter resultados negativos. Isto por que a decisão do STJ é importante, mas não vincula, ou seja, não torna obrigatório seu cumprimento em todos os casos. Ainda assim, para que um juiz negue um HC a partir de agora, ele terá que “rebolar” muito na retórica argumentativa para superar os argumentos definidos na decisão do STJ, pois para ser afastada jurisprudência superior, a fundamentação tem que ser muito melhor!

Como tudo são questões muito técnicas, ressalto que continuará sendo fundamental o trabalho de defesa por advogados e advogadas experientes e que saibam lidar bem com o assunto. Isto por que toda conquista alcançada é fruto de trabalhos excelentes realizados — e aqui saúdo especialmente os membros da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas — pois, se mal conduzidos, os HCs poderão significar retrocessos na luta.

Com a preocupação que sempre trago por aqui é que aproveito para relembrar que Habeas Corpus para cultivo de maconha não é lugar para aventureiros. Apesar dos grandes avanços, também há no cenário atual grande risco de retrocessos. Atualmente existem processos tramitando, inclusive no STF, que pela forma como foram conduzidos até então podem favorecer a jurisprudência contrária aos nossos interesses e gerar um impacto que poderá ser gigantesco sobre a causa por completo!

Quem tem receita médica e autorização da Anvisa já pode plantar?

Poder não pode, mas deve! A lei diz que é crime plantar, mas o senso de justiça nos mostra que não é crime plantar para proteger a saúde — e isto vem sendo reconhecido pelo Judiciário. Portanto, entre a lei e a justiça, fique do lado da justiça. Plantar é fazer justiça com as próprias mãos. Mas não espere que a lei bata na sua porta: faça justiça e busque o Judiciário para se proteger. Primeiro proteja sua saúde, depois, a sua liberdade — e para isso o Habeas Corpus cada vez mais se mostra o melhor caminho possível!

Com essa decisão, ainda preciso de advogado para pedir Habeas Corpus?

Antes ou depois desta decisão, nada muda sobre o direito de impetrar um HC. Qualquer um do povo pode pedir um Habeas Corpus para si ou para terceiros, basta ter um CPF e buscar a Justiça. Porém, como dito já muitas vezes, a matéria é complexa e demanda um preparo técnico para enfrentar o pensamento medieval que impregna o Judiciário quando o assunto é maconha, sendo fundamental saber manejar os recursos em instâncias superiores em caso de negativas. Por isso é extremamente aconselhável que você esteja bem assessorado por um advogado ou advogada experiente ao entrar nesta batalha.

Meu Habeas Corpus foi negado e eu desisti de lutar. Posso pedir outro depois dessa decisão do STJ?

Habeas Corpus podem ser pedidos tantas vezes forem necessárias para evitar o risco de prisão ou para relaxá-la. Se mesmo que no passado seu HC tenha sido negado, mas hoje você ainda se encontra em risco, cabe novo HC. O importante é saber o motivo pelo qual o HC foi negado ou pelo menos os argumentos utilizados pelo juiz que o negou.

Assim, diante do fato de o risco de prisão persistir (caso você tenha continuado plantando), é fundamental que o processo seja bem instruído e, com base na nova decisão do STJ, seja bem explorado o terreno fértil que se abre para quem possui necessidade médica e corre o risco de ser preso.

Aliás, fica a dica: se você tem um Habeas Corpus que não foi tão bem instruído no começo, se você fez sozinho ou seu advogado comeu mosca e deixou de juntar documentos necessários ou apresentar argumentos importantes, desistir de um processo com grande perigo de negativa pode ser uma boa estratégia. Às vezes, um passo atrás serve para tomada de impulso para um salto à frente. Mesmo estando bem preparado, nem sempre a resposta inicial é positiva, mas, com uma boa estratégia, a vitória fica mais certa e mais próxima. É importante se proteger individualmente, mas é sempre bom lembrar que toda decisão conta para retrocessos ou avanços coletivos!

Esta foi mais uma publicação em minha coluna na Smoke Buddies. Espero que tenham gostado. Busquei responder as perguntas mais recebidas por meio do meu perfil pessoal @eriktorquatoadvogado, o qual os convido a acompanhar. Mais uma vez gratidão à SB pelo espaço e pelo compromisso com a informação!

Um abraço e até a próxima!

Leia também:

O básico que você precisa saber sobre Habeas Corpus para cultivo

#PraTodosVerem: imagem de capa mostra um retrato do advogado Erik Torquato em moldura redonda e fundo branco, o nome da coluna, ‘Erik Torquato responde’, e, à direita, um malhete e sua base arredondada.

Sobre Erik Torquato

Advogado criminalista e ativista pelo fim da guerra às drogas. Membro da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas - Rede Reforma. Conselheiro do Núcleo de Álcool, Drogas e Saúde Mental da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP. Co-fundador da RENCA. Militante da Marcha da Maconha. (11) 97412-0420. E-mail eriktorquato.adv@gmail.com Tel: 21-97234-1865 / e-mail eriktorquato.adv@gmail.com
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