Uruguai deve permitir alimentos derivados de cannabis

Fotografia tirada de cima para baixo mostra cookies com gotas de chocolate e folhas de cannabis sobre uma superfície amarela lisa, com a luz incidindo da esquerda. Imagem: Pexels / Nataliya Vaitkevich.

De cervejas a biscoitos e doces: governo uruguaio estuda viabilizar, muito em breve, alimentos com cannabis; estão sendo analisadas várias iniciativas relacionadas à maconha, como permitir comestíveis e bebidas com canabidiol e mais acesso à prescrição de medicamentos de cannabis. Saiba mais no artigo do El País traduzido pela Smoke Buddies

Cerveja com gosto de maconha? O governo uruguaio estuda a possibilidade de incluir no Regulamento Bromatológico Nacional o uso do canabidiol (CBD), sem efeito euforizante. Isto significa que, se decidido a favor, a indústria da cannabis poderia se desenvolver para a produção e comercialização de bebidas ou outros produtos alimentícios, como por exemplo chás, biscoitos, chocolates, balas ou barras de cereais, com base nessa substância.

Nicolás Martinelli, assessor do presidente Luis Lacalle Pou, é que está a cargo do tema e disse ao El País que isto poderia por o Uruguai “na vanguarda a nível mundial, como feito com a Lei da Cannabis de 2013”, então aprovada pelo governo de Pepe Mujica.

Na campanha eleitoral o presidente se comprometeu a não retroceder a legalização da maconha, um tema no qual se avançou durante os governos da Frente Ampla. Entretanto, os alimentos não é a única novidade vinculada à cannabis. O governo também busca que os medicamentos que contêm cannabis e que se vendem nas farmácias, sob prescrição médica, possam ser acessíveis através dos prestadores e cooperativas de saúde, anuncia Carlos Lacava, o químico farmacêutico à frente do novo Programa Nacional da Cannabis Medicinal e Terapêutica.

E o desejo do governo de estimular a indústria da cannabis também passa por outras frentes. Martinelli foi encarregado pelo presidente Lacalle Pou de “desbloquear” o problema relacionado às operações bancárias e financeiras derivadas da cannabis — atualmente as empresas não podem abrir contas bancárias devido a uma regulamentação dos Estados Unidos — e definir um plano de ação a esse respeito. Além disso, trabalha para atualizar o Decreto 46, sobre a regulamentação e controle da cannabis, aprovado em 2015.

E, além disso, se somam aos anúncios feitos pelo presidente o lançamento de um projeto para desenvolver o setor de cânhamo em Bella Unión, com o objetivo de se tornar uma zona franca.

Na área privada, a Fotmer Life Sciences, uma das maiores do ramo, começou a exportar na semana passada suas flores desidratadas de cannabis, que serão vendidas em farmácias na Alemanha, com sua marca. A assinatura do acordo foi com a empresa Cantourage, com sede em Berlim. Este é um fato inédito para a indústria uruguaia. Outros players mostram interesse pelo Uruguai, como a aceleradora brasileira The Green Hub (TGH), que está estreitando seus contatos com produtores nacionais, após abrir uma operação por lá no início do ano.

Veremos, um a um, esses anúncios vinculados à indústria da cannabis.

Alimentos com canabidiol

Há uma “indústria ávida” e um “grande mercado potencial” de consumidores de alimentos com CBD, disse Martinelli, por seu sabor e propriedades.

O assessor presidencial explica que os produtos não terão THC — o componente psicoativo —, e que as proporções de CBD manuseadas (98% de pureza) não afetam negativamente a saúde. “É mais como vitaminas ou babosa”, diz ele. De fato, o CBD não causa reações alucinógenas, não altera o humor e nem gera dependência. A semente é nutritiva e rica em proteínas e gorduras, ajuda como anti-inflamatório, no relaxamento e nos casos de epilepsia e fibromialgia, segundo especialistas.

“Se for aprovado o decreto para incluir o uso de CBD no Regulamento Bromatológico Nacional, a indústria da cannabis vai se movimentar mais, o mercado interno terá mais chances de virem investidores para participarem do negócio e, se os produtos puderem ser exportados, será mais receita para o Uruguai”, acrescenta.

A próxima etapa do decreto é a adaptação da indústria nesse sentido. A Câmara das Empresas de Cannabis Medicinal (Cecam) garante que o mercado local já conta com players fortes e preparados para isso.

MERCADO
O boom das cervejas canábicas

Dos alimentos e bebidas com cannabis, um dos que mais vende no mundo é a cerveja. Na Inglaterra, por exemplo, está a cerveja Buffalo Soldier Hemp Ale, elaborada com óleo de CBD. Na Alemanha tem boa aceitação entre os consumidores a cerveja artesanal Cannabis Red Power, que, embora não utilize cannabis em sua elaboração, se caracteriza pelo aroma da flor de cânhamo e frutas. Na Argentina se produz desde 2017 a Beer & Weed a partir de terpenos de quatro variedades distintas de cannabis. Esse mesmo ano, duas grandes cervejeiras, Heineken e Moson Coors Brewing, anunciaram planos de desenvolvimento de bebidas que usam cannabis, e outras seguiram o caminho. Na Europa, a Constellation Brands (dona da marca Corona) investiu US$ 4 bilhões de dólares na Canopy Growth, a principal produtora de cannabis legal do Canadá. Em Porto Rico se lançou a FOK 420 CBD Ale, em fevereiro passado.

Além das bebidas à base de cannabis, existem doces, imitações de carne, bolos, azeites comestíveis, suplementos alimentares e um uso variado de alimentos com CBD permitidos em vários países. No mercado internacional, esse tipo de produto se popularizou tanto que passou a ser listado como commodity ou bem básico de consumo. O mercado legal de cannabis movimenta no mundo uma média de US$ 150 bilhões de dólares por ano, de acordo com com o relatório de 2020 da New Frontier Data.

No país existe um ecossistema de mais de cem empresas no setor, das quais 82 são de cânhamo e as demais estão vinculadas à cannabis medicinal. “Algumas dessas empresas têm mais de cinco anos desenvolvendo genética, métodos de cultivos, de colheita e extração, esperando oportunidades”, disse Marco Algorta, presidente da Cecam.

NetCann está nesta lista. Se trata de uma empresa totalmente uruguaia fundada em 2019, com foco em produtos agrofarmacêuticos. Nos últimos meses, tem investido vários milhões de dólares na plantação, extração e industrialização de cannabis, com foco no CBD. Juan Francisco Rodríguez, um dos fundadores e gerente financeiro, explica ao El País que, embora o mercado seja incipiente, ele espera que se desenvolva rapidamente, como aconteceu em outros países.

“Antes da pandemia, viajávamos para fóruns e feiras de maconha no Reino Unido, Canadá e Las Vegas. Sabemos que o potencial é enorme e nos preparamos para ir além dos medicamentos e cosméticos como agora, para nos tornamos fornecedores ou desenvolvedores no segmento de alimentos”, afirma. A NetCann tem um campo em San José e uma instalação industrial em Pando; é formada por 25 pessoas e, na safra, são cerca de 100.

Existe um precedente. Em 2018, o Ministério da Saúde Pública (MSP) autorizou a produção e comercialização de ervas com adição de cannabis, das marcas Cosentina e La Abuelita. Mas isso não aconteceu em toda a categoria de alimentos, apenas nas especialidades vegetais. A inclusão do CBD no Regulamento Bromatológico teria outro escopo e um impacto direto no setor de alimentos.

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Na saúde pública

O governo uruguaio acaba de lançar o Programa Nacional de Cannabis Medicinal do MSP, sob a responsabilidade de Lacava, também vice-presidente da Federação Internacional de Farmacêuticos.

O programa foi criado pela lei 19.847 sobre a cannabis medicinal, aprovada em 2019, e começou a operar em junho. Seu objetivo é melhorar a acessibilidade dos pacientes aos medicamentos à base de cannabis. E a novidade é que essa iniciativa incluirá cooperativas e prestadores de saúde.

Lacava explica ao El País: “Existem medicamentos que contêm cannabis que são registrados no MSP e são vendidos nas farmácias com receita médica. Mas eles não são incorporados ao formulário de medicamentos terapêuticos, que são os que prestadores e cooperativas de saúde — como ASSE (Administración de los Servicios de Salud del Estado) e outros — podem prescrever a seus usuários. Portanto, hoje a única forma de acessar os medicamentos que contêm cannabis é por meio do acesso privado, comprando-os nas farmácias. Isso que queremos mudar”.

Os prestadores de saúde poderem entregar medicamentos deste tipo não só tornará estes mais acessíveis à população, como também reduzirá os preços. Em que casos eles são prescritos? “Por exemplo, para a epilepsia refratária, que não responde a outros tratamentos. Não curam, mas reduzem os sintomas”, explica Lacava.

Os medicamentos à base de cannabis são produzidos no país com matéria-prima importada. “Por isso queremos que a indústria nacional desenvolva mais lavouras, faça as extrações e produza os princípios ativos para que as empresas formulem os medicamentos aqui”, acrescenta.

#PraTodosVerem: fotografia mostra uma pessoa agachada em meio a várias plantas e mudas de cannabis cultivadas em sacos pretos, em uma instalação fechada. Foto: AFP.

Voltando ao programa de cannabis medicinal, outro dos seus objetivos é contribuir para a regulamentação da Lei 19.847 e melhorar a coordenação dentro do MSP e entre as diferentes entidades que se encarregam da questão, como o Ministério da Pecuária e o Instituto de Regulação e Controle da Cannabis (IRCCA), para processos e procedimentos para obtenção de licenças.

A posição de Lacava reporta à Direção Geral de Saúde Ambiental e Segurança Alimentar (Digesa). Em relação aos prazos para implementar as novas metas, ele respondeu que ainda não consegue especificá-los.

Por sua vez, o subsecretário de Saúde Pública, José Luis Satdjian, considera que o programa tem “um destaque especial” dentro do MSP: “Estamos determinados a promover e estimular o setor da cannabis medicinal, devido ao seu enorme potencial”.

O subsecretário afirma que o governo editou duas portarias que “estão em sintonia com o apoio ao setor e com o avanço nas questões do período anterior”. Refere-se aos decretos 214/20 e 215/20 de agosto passado, que abrangem a exportação de cannabis medicinal e cânhamo industrial, embora na prática ainda não tenham sido observados maiores resultados.

As empresas que exportaram em 2020 foram: CPlant (5.662 quilos para a Suíça), Fotmer (1.920 quilos para os EUA, Israel e Portugal), Cannabhanga (500 quilos para a Suíça), Cannabis Uruguay (493 quilos para a Suíça), Ignapin (para a Suíça) e Medic Plast (para Argentina, Brasil e Peru), o que totaliza cerca de 10.350 quilos equivalentes a seis milhões de dólares, segundo dados da Pecuária.

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Uma zona franca canábica

Em uma visita a Bella Unión, no departamento de Artigas, o presidente Lacalle Pou anunciou em 11 de junho um chamado para o desenvolvimento da plantação e industrialização do cânhamo na zona, com o fim de gerar desenvolvimento e fontes de trabalho. As especificações ainda não foram divulgadas, mas uma zona franca especializada em cânhamo está projetada para permitir a instalação de indústrias e laboratórios de medicamentos relacionados à cannabis.

Em ocasiões anteriores, diretores da Alcoholes del Uruguay (ALUR) manifestaram interesse em diversificar a produção em Bella Unión, o que permitiria que as pessoas trabalhassem o ano todo e não se concentrassem nos períodos de colheita da cana-de-açúcar, que é o maior sustento da região.

A safra da cana-de-açúcar emprega 156 produtores e 1.400 cortadores: 800 externos e 600 funcionários da ALUR. A mão de obra para a cana-de-açúcar pode ser a mesma que para o cânhamo.

“No momento não temos mais informações do que a fornecida pelo presidente”, diz Diego Serrano, diretor-executivo do Ircca. “Em geral, as zonas francas têm funcionado bem em nossa economia, atraindo investimentos, gerando empregos e desenvolvendo setores, por isso parece um excelente projeto. A participação do instituto será a que lhe for confiada”.

Algorta, por sua vez, opina: “Isso é um tremendo impulso para a atividade. O governo já havia apontado a indústria da cannabis como um setor estratégico, mas agora se fala em uma zona temática. É um primeiro passo para dinamizar várias reivindicações da câmara sobre outros usos da cannabis não medicinal, como o uso do cânhamo para a formulação de alimentos, bebidas, cosméticos e produtos veterinários”.

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Bancos: plano A e B

Embora a legislação uruguaia permita a abertura de contas e transações bancárias para atividades relacionadas à cannabis, nos EUA esta é uma substância proibida e, portanto, essas transferências são consideradas ilegais.

Isso representa uma limitação para os bancos do Uruguai, que trabalham com bancos dos Estados Unidos. No entanto, analistas projetam que, com Joe Biden na presidência do país, essa situação mudará em breve. Martinelli fundamenta assim: “Há 15 estados nos Estados Unidos que legalizaram a maconha, sendo o mais recente Nova York, e eles estão gerando pressão. A Câmara dos Representantes já aprovou a lei do seguro bancário, que é como um salvo-conduto que permitiria a realização de operações bancárias e financeiras neste setor”.

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Este projeto foi aprovado no Congresso dos Estados Unidos por 321 votos a favor e 101 contra. Agora está sendo discutido no Senado.

O que acontecerá se essa iniciativa não for aprovada ou se demorar mais do que o esperado? “O plano B é que os bancos do Uruguai e os bancos federais dos Estados Unidos concordem em viabilizar certas transações. Não seriam acordos governo a governo, mas sim banco a banco”, responde Martinelli.

A experiência canadense serve de referência. Os bancos canadenses e estadunidenses não esperaram por nenhuma lei habilitadora  e assinaram um protocolo de ação que permite certas operações a partir da cannabis. “Estamos em contato com um escritório de advocacia norte-americano que reuniu as partes no caso do Canadá. Já pedimos parecer jurídico para um acordo semelhante com o Uruguai”, adianta o assessor da presidência.

O governo também está trabalhando na modificação do Decreto 46, que regulamenta os diversos aspectos relacionados ao cultivo, produção e comercialização de cannabis. “O que buscamos é ordenar o campo e aprimorar a legislação”, diz Martinelli.

Seu trabalho terá três linhas. Primeiro, que a lei facilite mais a exportação (hoje bastante bloqueada); em seguida, especifique as definições no texto para que não haja lacunas ou ambiguidades (por exemplo, o que é “matéria-prima”, o que é “produto semiprocessado de acordo com a lei”); e, por fim, estabelecer com clareza a abrangência de cada organismo que participa do tema cannabis. “Às vezes os interessados ​​vão de uma organização para outra, ninguém resolve e perde-se tempo”, diz Martinelli.

Diante do impulso do setor, Serrano destaca que o Ircca também está focado na agilização dos processos por meio de mudanças na fase de apresentação dos projetos em busca da melhoria da qualidade, o que melhoraria o tempo de avaliação, entre outras medidas.

“Vários projetos empresariais tiveram sua implantação retardada não só pelo tempo de licenciamento do Ircca, mas também, em alguns casos, pela falta de capital para a realização dos projetos, devido a cadeias de produção e comercialização ainda não encerradas e devido à falta de autorizações, registros ou autorizações de outras entidades, entre outros motivos”, defende o diretor do instituto.

Assim, nos últimos dias, tem havido vários impulsos a este setor dinâmico e polêmico. Será preciso ver até onde vai.

Empreendedorismo

“Há participantes muito fortes no Uruguai esperando que as portas se abram”, disse Marco Algorta, presidente da Câmara das Empresas de Cannabis. Entre eles está YVY Life Sciences, grupo de capitais uruguaios e argentinos chefiado pelo empresário e ex-deputado argentino Facundo Garretón, que comprou a mansão “La Tertulia” de Susana Giménez, de 110 hectares, a 15 quilômetros de Laguna Garzón, para seu novo empreendimento de cultivo de cannabis. A transação totalizou 4,6 milhões de dólares e foi realizada em fevereiro. Garretón vai transformar a fazenda em um hotel temático e centro de cultivo, pesquisa e desenvolvimento do uso medicinal da planta cannabis. Em janeiro, o empresário e a FLA Ventures compraram a maioria das ações da Blueberris Medical Corporation, empresa do setor de cannabis listada na Bolsa de Valores canadense, aumentando seu poder.

Na antiga chácara da estrela argentina, Garretón também anunciou que gostaria de desenvolver o “turismo recreativo” se as regulamentações uruguaias o acompanharem no futuro. Hoje, 14 farmácias participam da venda legal de maconha para uso adulto no Uruguai, um pequeno negócio que nasceu há cerca de quatro anos e não decolou totalmente. No entanto, a legalização da maconha retirou cerca de 22 milhões de dólares do narcotráfico desde 2013, o que rendeu uma receita de 45,5 milhões de dólares para um mercado de 40 toneladas por ano, segundo dados oficiais. A aposta nacional está mais focada na cannabis medicinal e não tanto na recreativa. Segundo Algorta, o Ministério da Pecuária é o órgão que melhor avaliou o potencial do setor de cannabis medicinal, assim como grande parte das empresas ligadas à produção agrícola.

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