Entre demonstrações de força e negligências, na queda de braço entre os poderes, quem perde é o Brasil
A maconha é a substância ilícita mais consumida no mundo — e o Brasil segue essa tendência global. Segundo dados do Instituto Datafolha, um em cada cinco brasileiros já experimentou a erva uma vez na vida, e 5% faz disso um hábito. Mas, enquanto a maioria da população apoia seu uso enquanto ferramenta terapêutica, também desaprova a descriminalização do consumo pessoal. Hipócrita, não?
“Antes de tudo, é bom considerar que a humanidade é usuária de diversas substâncias psicoativas, sejam elas legais ou ilegais. As hoje ditas ilegais, aqui, são as previstas na portaria 344 da Anvisa, de 1998”, conta o advogado criminalista Michael Dantas, diretor da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas. “Ao mesmo tempo, somos uma sociedade moralista e isso se reflete nessas pesquisas, principalmente, por como se dá a formação das questões, pois, na lógica de vender medo, a sociedade vai se mostrar medrosa mesmo”.
E, já que o Congresso nacional e seus legisladores são um espelho do pensamento hegemônico da sociedade, não é de se admirar que a hipocrisia impere por lá, dando espaço para um retrocesso sem tamanho na política de drogas do Brasil. Sim, estamos falando da PEC 45/2023 — também conhecida como PEC das Drogas.
Com a ajuda de Michael, dichavamos essa história, que parece ter saído de um roteiro de série à la House of Cards, cheia de revanchismo e disputa de poder, para você entender o contexto, a situação atual e o que pode ser feito para evitar um fim menos trágico.
Afinal, o que é essa tal de PEC?
A Proposta de Emenda à Constituição 45/2023, do senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), propõe alterar o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 para incluir a criminalização da posse e do porte de drogas ilícitas, independentemente da quantidade.
Na prática, a Lei de Drogas (11.343/2006) não será alterada. A proposta de incluir a criminalização do usuário (sem pena de prisão) na Constituição é uma resposta política à movimentação no Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido de julgá-la inconstitucional, através do Recurso Extraordinário 635.659 — em um julgamento que se arrasta desde 2015 e que caminha, em passos lentos, para a descriminalização dos usuários de maconha (por um placar de 5 x 3 no momento). Afinal, se a criminalização estiver na Constituição, como julgá-la inconstitucional?
Em que pé que estamos?
Depois da aprovação da PEC em dois turnos pelo Senado (que, em mais uma marotagem, não respeitou o espaço de três sessões entre um turno e outro, previsto em regimento), a proposta está na Câmara dos Deputados, e só será aprovada se obtiver pelo menos três quintos dos votos dos deputados (308 votos) em dois turnos. Caso haja alguma alteração no texto, ele deve voltar ao Senado.
“Eu não espero algo muito diferente do que foi no Senado, onde nasceu a proposta”, comenta Michael, “mas vejo uma possibilidade maior de ampliar o debate, bem como em ter uma maior resistência da bancada mais progressista, o que só acontecerá também se houver apelo popular”.
Com a relatoria do deputado Ricardo Salles (sim, ele mesmo, o da boiada) na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), que já prometeu trabalhar para deixar a PEC ainda mais retrógrada, a proposta aguarda tramitação na Casa legislativa — da CCJC para o plenário, onde, segundo sinalizou o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), deve ficar parada (pelo menos enquanto o julgamento no STF também estiver).
Embate entre poderes
A pergunta que fica é: uma vez aprovada pela Câmara dos Deputados, a PEC alteraria de alguma forma o julgamento no STF sobre a descriminalização?
“Temos aí duas possibilidades”, explica Michael. “Vejo como sendo possível o próprio STF, ao retomar o julgamento, incluir a discussão sobre a PEC, podendo e devendo voltar ao tema central do RE, que é o direito à intimidade, direito fundamental previsto no inciso X do artigo 5° da Constituição Federal; e de tratar-se de crime impossível, pois não tem como haver crime sem vítima, e, como o bem defendido pela Lei de Drogas é a saúde pública, essa não é atingida no ato de um indivíduo se drogar”.
Outra alternativa, para o caso de aprovação da PEC, seria a contestação da emenda através de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, que pode ser proposta por certas entidades, como a OAB, o presidente da República, os presidentes do Senado e Câmara e o Procurador-Geral da República, e por partidos políticos com representação no Congresso. Neste caso, o STF é provocado a exercer o controle de constitucionalidade, definindo se a emenda fere ou não direitos fundamentais, as chamadas cláusulas pétreas da Constituição.
Neste meio tempo, a PEC prevaleceria — e toda a sociedade sairia perdendo, sobretudo “o corpo alvo dessa guerra, que é o corpo marginal, aquele que está à margem do que a sociedade impõe como justa e honesta, que é ter um emprego, ter teto e segurança alimentar, tudo o que não chega aos que estão, por exemplo, no território chamado de Cracolândia”, diz Michael.
Poder do povo
Diante de um cenário tenebroso, o que nos resta?
“Para fazer frente a essa violência, precisamos nos levantar, nos mobilizar e nos articular, levando a demanda aos Deputados Federais, cobrando desses o enfrentamento em representação à vida e ao direito à liberdade e intimidade do cidadão”, diz. “Nos momentos de maiores ataques que mais mostramos nossa força em resistir e insurgir”.
Antes que seja tarde, cobre uma posição coerente de seu representante eleito, vá às ruas, participe das mobilizações sociais, como as Marchas da Maconha, e reivindique uma política de drogas que cuide das pessoas ao invés de criminalizar usuários.