Estudo pioneiro analisou o efeito do canabinoide em cérebros de camundongos para entender o mecanismo de atuação da substância no tratamento da epilepsia
Mais um estudo aponta para as propriedades neuroprotetoras da cannabis. Uma pesquisa realizada na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) analisou o efeito do canabidiol (CBD) no cérebro de camundongos e concluiu que o canabinoide pode ser capaz de preservar os neurônios.
Inspirados na eficácia da substância encontrada na maconha para tratar a epilepsia, pesquisadores do Laboratório de Eletrofisiologia, Neurobiologia e Comportamento (LENC) do Instituto de Biologia da Unicamp investigaram mudanças na expressão gênica em algumas áreas dos cérebros dos animais provocadas pelo canabinoide.
O trabalho detectou alterações na função de cerca de três mil genes em neurônios do hipocampo, principalmente em estruturas ligadas à fabricação e economia de energia das células, à produção de proteínas e à organização das sinapses — a comunicação entre os neurônios.
“Essa questão da economia energética das células pode, inclusive, apontar um efeito positivo em casos de degeneração do sistema nervoso, de morte dos neurônios. Então, esse estudo pode até apontar outras possíveis aplicações”, comentou André Vieira, professor de fisiologia humana e animal e um dos autores do estudo, ao g1.
O estudo foi idealizado pelo biólogo João Paulo Machado, que é doutorando de Vieira, e publicado no Acta Neuropsychiatrica, periódico científico da Universidade de Cambridge, na Inglaterra.
“No organismo, o CBD interage principalmente com o sistema endocanabinoide, que é responsável por modular todos os outros. Devido a essa capacidade de se comunicar com outras moléculas, esperávamos que fosse modular a expressão gênica. Só não esperávamos que a resposta seria tão significativa”, afirmou Machado ao Jornal da Unicamp.
De acordo com Vieira, essa é a primeira vez que pesquisadores investigam a ação molecular do canabidiol diretamente no cérebro. “Os anteriores, com animais, concentraram-se no controle das crises convulsivas e na observação comportamental”, observou.
Os pesquisadores trabalharam com dois grupos de camundongos, além de dois grupos-controle que receberam placebo. O primeiro conjunto de animais recebeu uma dose única de canabidiol em apenas um dia. A mesma quantidade foi administrada para o segundo grupo, porém durtane sete dias consecutivos. Foi escolhida uma dosagem considerada compatível com a que é utilizada para conter crises convulsivas.
Machado usou uma técnica conhecida como microdissecção a laser pra coletar células específicas dos cérebros dos camundongos, encontradas na parte inferior do hipocampo, que é a região mais afetada pelas convulsões.
Após a coleta, foi feito o sequenciamento genético do material, além da identificação e contagem dos genes expressos. Com o uso de ferramentas de bioinformática, envolvendo tecnologias como o RNA-seq, o biólogo pôde interpretar os dados.
O pesquisador encontrou uma relação entre a frequência da aplicação do canabidiol e o volume de genes alterados. Nos animais que receberam o canabinoide por um dia, o biólogo contou modulação na expressão de cerca de 300 genes. Já no grupo em que a substância foi aplicada por sete dias, foram 2.924 genes com expressão modificada.
As modificações se concentraram em genes ligados à fabricação de energia, à produção de proteínas e ao processo de expressão gênica das células — que regula diversos processos essenciais para funções celulares. O pesquisador também notou um aumento da expressão de genes envolvidos na organização das sinapses.
Embora não se possa atestar que os efeitos terapêuticos do canabidiol contra a epilepsia sejam causados pelas oscilações observados no estudo, os resultados sugerem a existência de uma relação entre o uso do canabinoide e uma economia de energia celular que poderia resultar em um efeito protetor do sistema nervoso.
“Esse trabalho é um marco para nosso grupo de pesquisas e para o entendimento que se tem dessa molécula na academia. É o ponto de partida de uma nova linha que se inicia no Lenc”, afirmou Machado.
Os pesquisadores continuarão investigando como o canabidiol age nos neurônios para entender se as alterações acontecem em todo o cérebro ou apenas em regiões específicas, e como a alteração de genes ligados à produção de energia pode ajudar.
A pesquisa foi viabilizada a partir de uma parceria com a pesquisadora Valéria de Almeida, à época pós-doutoranda no Laboratório de Neuroproteômica da Unicamp, e com o professor José Alexandre Crippa, da Universidade de São Paulo (USP), que forneceu o canabidiol.
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Propriedades neuroprotetoras de outros canabinoides
Um estudo separado, publicado em 2022 na Free Radical Biology and Medicine, descobriu que o canabinol (CBN) protege os neurônios do estresse oxidativo e da morte celular. Os cientistas observaram os efeitos protetores em culturas de células nervosas de camundongos e de humanos. As descobertas sugerem que o canabinoide tem potencial para tratar doenças neurodegenerativas relacionadas à idade, como o mal de Alzheimer.
“As evidências mostram que o CBN é seguro em animais e humanos. E como o CBN funciona independentemente dos receptores canabinoides, ele também pode funcionar em uma ampla variedade de células com amplo potencial terapêutico”, disse o primeiro autor Zhibin Liang, afiliado ao Laboratório de Neurobiologia Celular do Instituto Salk.
A mesma equipe de pesquisadores do Salk publicou um novo estudo em março deste ano, onde revelou o desenvolvimento de quatro compostos inspirados no CBN que são ainda mais neuroprotetores do que a molécula padrão do canabinoide. Os achados foram divulgados na revista Redox Biology.
“Nossas descobertas ajudam a demonstrar o potencial terapêutico do CBN, bem como a oportunidade científica que temos de replicar e refinar suas propriedades semelhantes às de medicamentos”, disse a professora pesquisadora Pamela Maher, autora sênior do estudo.
Os resultados sugerem uma promessa para o CBN no tratamento de distúrbios neurológicos como lesão cerebral traumática, doença de Alzheimer e Parkinson, e destacam como estudos adicionais sobre os efeitos do canabinoide no cérebro poderiam inspirar o desenvolvimento de novas terapias para uso clínico.
Muitos distúrbios neurológicos envolvem a morte dos neurônios, devido à disfunção de suas mitocôndrias geradoras de energia. A equipe de Salk descobriu que o CBN atinge o seu efeito neuroprotetor prevenindo esta disfunção mitocondrial.
Um outro estudo, publicado na Aging and Mechanisms of Disease em 2016, revelou que o tetraidrocanabinol (THC) promove a remoção de aglomerados tóxicos de proteína beta-amiloide no cérebro, que supostamente desencadeiam a progressão da doença de Alzheimer. Os pesquisadores testaram os efeitos do canabinoide em neurônios humanos cultivados em laboratório.
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Imagem de capa: Gina Coleman / Weedmaps.