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Imagem mostra parte da capa da edição do suplemento Folhetim da Folha de São Paulo de 3 de agosto de 1980, onde se vê o rosto de uma pessoa formado por vários círculos pretos sobre fundo branco, e a frase “Tóxicos, tentativa de fuga ou de ajustamento?”.

Representações de usuários veiculadas pela Folha de S.Paulo contribuíram com a estigmatização do uso de drogas durante Ditadura Militar, aponta estudo

Pesquisa evidencia como a forma que o jornal noticiava o tema das drogas legitimava as práticas do governo militar e consolidava a visão da pessoa usuária de substâncias como “subversiva”

No período da Ditadura Militar, uma série de medidas legais baseadas em um modelo bélico de “guerra às drogas” oficializaram o usuário de drogas como criminoso, gerando enquadramentos penais ou em “tratamentos de saúde”. Nesse contexto, diversos meios de comunicação e diferentes práticas artísticas passaram a ser considerados pela Escola Superior de Guerra como instrumentos de subversão, ao passo que a imprensa apoiadora do regime divulgava informações sobre os “perigos das drogas”, alimentando as representações sobre a pessoa usuária de substâncias.

Isso é o que sugere uma pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que identificou as representações sociais do usuário de substâncias psicoativas em 51 matérias jornalísticas da Folha de São Paulo veiculadas entre abril de 1964 e março de 1985.

O pesquisador Júlio César Rigoni Filho demonstrou como o discurso jornalístico elaborou um processo de segregação das áreas urbanas nas quais o consumo e o tráfico de drogas têm maiores incidências, baseado em aspectos socioeconômicos das localidades, e como as representações dos usuários formadas pela Folha legitimavam as práticas do governo no campo das drogas.

A tortura e a violação de direitos promovidas pela Ditadura com a justificativa da repressão ao uso de drogas eram ofuscadas pela Folha, que tornou-se um dos jornais de maior circulação do país nesse mesmo período, com a expansão de seus parques gráficos. Segundo Rigoni Filho, as estratégias empresariais do grupo incluíam a consolidação de um projeto político-cultural cuja base centrava-se no apoio aos governos militares.

“Com isso, o combate à subversão, seja pela promulgação de diretrizes morais e cívicas que enalteceram o apoio aos governos militares ou pela divulgação de indivíduos procurados pelas autoridades, dava destaque ainda ao tema drogas”, escreveu o pesquisador em sua dissertação, mencionando a obra de Beatriz Kushnir, Cães de guarda, onde a historiadora afirma que a divulgação dessas notícias aumentava as vendas do jornal e tinha o apoio dos donos.

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Para Rigoni Filho, durante a ditadura militar, a repressão às drogas contribuiu com a repressão à subversão para justificar ainda mais a presença do governo nos espaços universitários.

“Em relação às universidades havia uma lógica de vigilância, muitas vezes apoiada pelas próprias instituições, a fim de combater o comunismo e ideias que desviassem os jovens. Os jovens dessa juventude burguesa eram considerados potenciais subversivos e mereciam atenção para não serem corrompidos”, disse o pesquisador à revista Ciência UFPR.

Em seu trabalho, Rigoni ressalta que documentos produzidos pelo órgão de inteligência da Ditadura Militar, o Sistema Nacional de Informações (SNI), apontavam que o vício em drogas era uma das causas para o envolvimento de jovens em movimentos contrários ao regime militar.

A pesquisa sugere que as representações sobre a pessoa usuária de drogas veiculadas pela mídia colaboraram com a postura adotada pela ditadura. “O usuário expresso pela Folha de S.Paulo é alguém que se arruína ao consumir drogas, tornando-se excluído da sociedade”, escreveu Rigoni, ressaltando que muitas das representações “envolvem miséria, precariedade, decadência moral e social, além da delinquência, como os crimes urbanos mais comuns: roubos, tráfico, prostituição, agressões e outros”.

Segundo o pesquisador, os usuários de drogas e os traficantes eram tratados como inimigos do país, em decorrência da influência dos Estados Unidos na condenação internacional do uso de substâncias. O que também foi reforçado por meios de comunicação como a Folha, uma vez que “a narrativa jornalística gerencia o senso comum ao construir, discursivamente, um inimigo comum”.

“A Folha destacava muitos casos de jovens de classe média que se envolviam com drogas, sejam usuários ou potenciais criminosos. Então, as discussões sobre drogas pareciam ser pouco baseadas em evidências concretas e mais em opiniões difusas que, muitas vezes, geravam pânico e acendiam a opinião pública”, afirmou Rigoni.

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Uma das representações sociais identificadas pela pesquisa na amostra de matérias envolve o temor de que o uso de substâncias potencialize ou torne alguém um assassino, como nos casos da menina Ana Lídia e da jovem Cláudia Lessin, em que há indício de consumo de drogas. Os assassinatos subsequentes aos casos de maior repercussão passaram a ganhar espaço nas páginas da Folha, como aponta a pesquisa.

Outra representação é a de criminosos como o traficante-usuário, que comercializa entorpecentes para sustentar seu vício, logo, potenciais traficantes para as autoridades policiais. Também eram tratados como dependentes, que eram incapazes de zelar pela própria vida e precisavam de ajuda médica, como foi reforçado pelo psiquiatra Oswald Moraes Andrade em um parecer elaborado ao Congresso Nacional em 1970, onde define que o tratamento consiste em internação voluntária ou involuntária em clínicas especializadas.

Rigoni também lança mão de trechos do “Canto dos Malditos”, livro em que o autor Austregésilo Carrano Bueno narra o seu aprisionamento em hospícios pelo próprio pai por causa de um cigarro de maconha e todos os horrores que passou nesses lugares ao longo da década de 1970. A história inspirou o filme “Bicho de Sete Cabeças”, de Laís Bodanzky.

“O caráter maniqueísta da Ditadura fortaleceu a identificação de características consideradas desviantes e típicas de usuários de drogas, justificadas por médicos, psiquiatras, delegados e juízes, em uma busca por sintomas e sinais corpóreos que distinguiam os ‘normais’ dos ‘anormais’, ou seja, pessoas alinhadas ao regime ou as que representavam uma ameaça, como usuários e traficantes”, discorre o pesquisador.

Uma terceira representação do usuário de drogas enquanto criminoso veiculada pela Folha é a do “sujeito prisioneiro”, que se refere aos usuários que sofrem violências por parte da polícia, “além de muitas vezes serem constrangidos ao longo do processo de encarceramento, inclusive sujeitos ao desaparecimento ou a mortes suspeitas”, segundo a pesquisa.

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O estudo também registra como termos usados nas matérias jornalísticas para rotular os usuários de substâncias psicoativas — toxicômano, viciado, drogado, usuário de drogas etc. — serviam para classificar os “subversivos”, ou seja, os inimigos do regime. Os termos também constavam em relatórios militares e arquivos do Sistema Nacional de Informações.

Em uma lista de “terroristas” procurados pela polícia publicada em 1972 pela Folha de S.Paulo, por exemplo, a lista de ações praticadas por uma das pessoas procuradas traz a explicação que “é toxicômano (usa maconha)”. O indivíduo em questão pertencia à Ação Libertadora Nacional (ALN), organização de esquerda que defendeu a luta armada contra a ditadura.

O jornal Folha de S.Paulo veicula estigmas como características, marcas, conferidas a determinados sujeitos para inferiorizá-los na sociedade. Nas suas páginas, expressa-se uma relação entre determinado padrão social de normalidade e cada indivíduo. Por exemplo, o usuário de drogas só é considerado ilegítimo, como um ‘viciado’ ou ‘degenerado’, devido a uma mensuração da própria sociedade, sendo que, nesse caso, há indivíduos que usam determinadas substâncias e que não são considerados ‘viciados’, como os fumantes”, escreveu Rigoni.

Em seu entendimento, “o estigma fundamenta-se de acordo com o caráter social, o julgamento coletivo e a visibilidade, como determinadas características ou condutas são aceitáveis ou inaceitáveis na comunidade e as implicações disso”.

A dissertação “Corpos para punir ou tratar: as representações sociais sobre os usuários de drogas na Folha de S. Paulo durante a ditadura militar” pode ser acessada através do acervo digital da UFPR.

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#PraTodosVerem: imagem de capa mostra parte da capa da edição do suplemento Folhetim da Folha de São Paulo de 3 de agosto de 1980, onde se vê o rosto de uma pessoa formado por vários círculos pretos sobre fundo branco, e a frase “Tóxicos, tentativa de fuga ou de ajustamento?”.

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