Com a vitória de Yamandú Orsi, a volta da Frente Ampla, coligação governamental com raízes progressistas responsável pela legalização da maconha no Uruguai, poderá trazer consigo novas afinidades em relação à regulamentação
Mais de 10 anos se passaram desde a legislação sobre cannabis para uso adulto na República Oriental do Uruguai. “Alguém tem que ser o primeiro”, disse o então presidente José “Pepe” Mujica, em 2012, quando se debatia a possibilidade de legalizar o mercado de cannabis. Poucos meses depois, em dezembro de 2013, o Uruguai tornou-se o primeiro país do mundo a legalizar a venda e o cultivo de cannabis.
Da mesma forma, embora pioneira, a Lei 19.172 teve futuros diferentes. Depois de algumas irregularidades, polêmicas e discussões, fundamentalmente ligadas à administração cessante, o regresso da Frente Ampla, coligação governamental com raízes progressistas e responsável por aquela lei, poderá trazer consigo novas afinidades em relação à regulamentação da maconha no país.
Com esta nova configuração política, surgem algumas possíveis questões: o que pode acontecer, agora, com a cannabis no Uruguai? A Frente Ampla dará algum tipo de prioridade à cannabis? O novo presidente Yamandú Orsi já se posicionou sobre o assunto?
Um modelo de negócio ou um direito dos usuários e pacientes?
A gestão de Luis Lacalle Pou deu uma “visão empresarial à maconha”, afirma o jornalista Camilo Salvetti ao El Planteo.
Segundo dados oficiais do Instituto de Regulação e Controle da Cannabis (IRCCA), no Uruguai existem 3 licenças aprovadas para cultivo de psicoativos para uso adulto, cerca de 15 para cultivo para uso medicinal, 40 farmácias cadastradas, 71.843 compradores, 11.708 autocultivadores, 410 clubes e 13.687 associados.
“No Uruguai temos 3 formas de acesso à cannabis: comprando em farmácias, em clube de cannabis ou registrando-se como autocultivador, o que limita o número de plantas”, diz Salvetti.
Por exemplo, a maconha nas farmácias é obtida por meio de 3 empresas, que foram as vencedoras das licitações para plantar, produzir e transportar maconha. “A piada é que aquela maconha não bate”, identifica o jornalista. “O governo respondeu à reivindicação das produtoras e flexibilizou a quantidade de THC que a maconha pode ter nas farmácias.”
Enquanto isso, esse cenário causou aspereza entre clubes e empresas de cannabis. “As empresas relataram que os clubes de cannabis não foram devidamente supervisionados e foi gerado um mercado cinza. Penso que embora possa haver mais usuários registados nas farmácias, são os associados dos clubes que estão a participar, a comprar e a movimentar dinheiro”, continua o jornalista.
Ao mesmo tempo, nos últimos anos assistimos a um aumento nas penas de prisão por “microtráfico”, com penas e sentenças “mais severas” para “pequenas quantidades” de maconha. “O novo governo deveria repensar a política em torno da maconha e decidir se a fará com base nas empresas que plantam maconha estatal ou com base nas pessoas”, diz Salvetti.
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Mudanças na lei da cannabis
“Quando a ‘direita’ venceu, em 2020, houve uma mudança significativa na perspectiva da lei da cannabis”, identifica Rosina Yemini, ativista, professora de biologia e fundadora do Cultivando Clubes, espaço de assessoria à criação e gestão de clubes.
Esta mudança, garante Yemini, não teve a ver com a “lei mãe” de 2013, mas sim com modificações na estrutura de julgamento dos utilizadores que culminaram com um aumento da criminalização do setor e um aprofundamento das zonas cinzentas regulatórias. . “Hoje temos um grande número de produtores presos”, acusa Yemini.
Quanto à chegada da Frente Ampla ao poder, Yemini espera que o governo Orsi aborde esta discussão, uma vez que “o novo governo poderá mudar a perspectiva da lei em relação aos utilizadores e trabalhadores de cannabis”.
E, ao mesmo tempo, espera que as autoridades da IRCCA sejam “receptivas a acolher o ativismo para participar no desenvolvimento de regulamentações”.
O consenso sobre a cannabis no Uruguai
A verdade que flutua no ecossistema canábico uruguaio é que a regulação do mercado tem um amplo consenso político. Não há, salvo poucas exceções, propostas concretas para reverter ou reverter o esquema de legalização no Uruguai.
“Hoje, a cannabis pode ser considerada uma política de Estado, que já se integrou de forma muito estável ao repertório das políticas públicas e da realidade social uruguaia”, afirma Diego Olivera, senador substituto, coordenador de “segurança pública” da Frente Ampla, secretário-geral de drogas do Secretariado Nacional e presidente do IRCCA.
As políticas e regulamentações relativas à cannabis foram aceitas pela sociedade uruguaia como um avanço e, atualmente, não mantém nenhum obstáculo sociocultural realmente sério.
“Em termos comparativos, somos um país bastante progressista socialmente. E isso tem a ver com a nossa história política e vemos isso como parte dessa forma de ser e entender a relação entre o Estado e as liberdades individuais”, diz Olivera.
Formalmente, Olivera não percebe um “regresso” na regulamentação da cannabis: “Minha visão é que foi uma estratégia de manutenção, de administração do que existe”, afirma.
No entanto, identifica um “momento inicial” em que alguns setores governamentais ligados à política de segurança “queriam que a polícia tivesse uma intervenção muito mais direta no controle da economia legal da maconha, em detrimento do IRCCA, que é uma entidade civil”.
Nas suas palavras: “Isso gerou uma grande discussão porque foi uma mudança de paradigma muito importante. Foi um certo retorno à criminalização da cannabis. E isso parou. Tanto a coligação de esquerda como a de centro-direita se opuseram. Também não houve estratégia para ampliar a regulação ou flexibilizar a estrutura regulatória, o que poderia ser considerado rígido.”
“No início do governo foi desbloqueada alguma questão burocrática para facilitar as exportações de cannabis medicinal, é verdade. Mas não houve nenhuma modificação fundamental”, conclui Olivera.
As propostas da Frente Ampla sobre questões de cannabis
Nas bases programáticas do próximo governo da Frente Ampla há menções ao aprofundamento da estratégia de regulação do mercado de cannabis.
Alguns temas a acompanhar de perto: o impulso para uma possível promoção do turismo canábico, que poderá promover um importante afluxo de dinheiro e investimentos para o país; o reordenamento das penalidades para o microtráfico; as limitações dos clubes de cannabis e a possibilidade de começar a admitir novos membros; os obstáculos que os utilizadores devem superar para obter cannabis legalmente; falta de acesso aos pontos de venda; o volume da demanda em relação à oferta; novas formas de complementar o mercado; e qual o caminho para fortalecer a Secretaria Nacional de Drogas para que os uruguaios possam ter acesso legal à maconha sem problemas e, consequentemente, implementar políticas de redução de danos.
“Há muito trabalho a fazer. O desafio da política e da proposta da Frente Ampla é que todos os usuários de maconha tenham a possibilidade de acessá-la pelos canais legais”, encerra Olivera sobre as definições formais de seu partido.
Por Hernán Panessi, originalmente publicado no El Planteo.
Foto de capa: freepik.
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