“A comunidade internacional deve procurar abordar e reverter os danos causados por décadas de uma ‘guerra às drogas’ global”, escreveram os especialistas em direitos humanos
Um grupo de especialistas independentes do Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) está apelando por mudanças nas políticas globais sobre drogas, que vêm causando “impactos devastadores sobre os direitos humanos e a saúde”, e defendendo que estados-membros passem da abordagem punitivista e de criminalização para a da redução de danos.
“A ‘guerra às drogas’ resultou numa série de violações graves dos direitos humanos, conforme documentado por vários especialistas em direitos humanos da ONU ao longo dos anos”, escreveram os relatores especiais, especialistas independentes e grupos de trabalho do conselho. “Estes abusos generalizados incluíram a detenção compulsória por drogas em nome do ‘tratamento’, o encarceramento e a superlotação prisional relacionada, o uso contínuo da pena de morte para crimes relacionados a drogas, assassinatos, desaparecimentos e a contínua falta e desigualdade de acesso ao tratamento, redução de danos e medicamentos essenciais”.
A declaração cita um relatório do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), que aponta como as políticas repressivas e abordagens punitivas adotadas pelos países-membros para lidar com as drogas ilícitas estão em desacordo com o objetivo de proteção da saúde e do bem-estar da humanidade das convenções internacionais de controle de drogas.
O documento do Alto Comissariado ressalta que as Diretrizes Internacionais sobre Direitos Humanos e Política de Drogas “fornecem um conjunto abrangente de orientação jurídica internacional para colocar a dignidade humana, os direitos humanos e o desenvolvimento sustentável no centro das respostas do Estado ao problema das drogas”. As diretrizes preveem que “as obrigações contidas nos tratados internacionais de controle de drogas não podem ser utilizadas como base para violar obrigações internacionais concomitantes em matéria de direitos humanos”.
“Apesar das evidências de que a remoção de sanções contra pessoas que usam drogas pode reduzir a superlotação prisional, melhorar os resultados de saúde, defender os direitos humanos e abordar o estigma e a discriminação, um número limitado de países descriminalizaram o uso, a posse, a compra e o cultivo de drogas para uso pessoal”, observa o relatório do ACNUDH. “A posição comum do sistema das Nações Unidas sobre questões relacionadas com as drogas apela à descriminalização da posse de drogas para uso pessoal, e o Conselho Internacional de Controlo de Narcóticos concluiu que a descriminalização está alinhada com as convenções das Nações Unidas sobre controle de drogas.”
Fazendo referência ao tema do Dia Mundial contra as Drogas, realizado na última quarta-feira, “A evidência é clara: investir na prevenção”, os especialistas da ONU instam os estados-membros e todas as entidades das Nações Unidas a “colocarem as evidências e as comunidades no centro das políticas de drogas, passando da punição para o apoio, e investindo em toda a gama de intervenções de saúde baseadas em evidências para pessoas que usam drogas, desde a prevenção até a redução de danos, tratamento e cuidados posteriores, enfatizando a necessidade de uma base voluntária e o pleno respeito das normas e padrões de direitos humanos”.
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O grupo também destaca que o termo “redução de danos” (harm reduction) foi utilizado pela primeira vez em uma resolução recente adotada pela Comissão de Narcóticos da ONU. “Endossar uma abordagem de redução dos danos ao consumo de drogas é ainda mais importante, uma vez que uma em cada oito pessoas que injetam drogas vive atualmente com HIV, o que representa 1,6 milhão de pessoas”, diz o documento.
A declaração também aponta para um estudo do Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária do Conselho de Direitos Humanos, que revela como a “guerra às drogas” afetou particularmente mulheres e garotas e grupos marginalizados, incluindo pessoas que vivem na pobreza, jovens, pessoas de ascendência africana, povos indígenas, minorias, pessoas LGBTQIA+ e profissionais do sexo. “Muitos dos detidos no âmbito da ‘guerra às drogas’ tornam-se idosos, ao mesmo tempo que são submetidos a condições inadequadas devido à duração das penas relacionadas às drogas”, escreveram os especialistas.
O documento menciona ainda o novo relatório da Relatora Especial da ONU sobre o direito à saúde, Tlaleng Mofokeng, que salienta que a criminalização excessiva, a estigmatização e a discriminação associadas ao consumo de drogas representam barreiras estruturais que conduzem a piores resultados de saúde e pede aos estados-membros que abandonem as políticas punitivistas e adotem abordagens baseadas na redução de danos.
Além disso, o Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU continua a denunciar as consequências das políticas de drogas nos direitos humanos, como a internação involuntária de usuários de substâncias e a contínua falta de acesso à redução de danos, que afeta gravemente o direito à saúde, e os efeitos nocivos da criminalização sobre as pessoas que usam drogas.
“A sociedade civil e as comunidades diretamente afetadas pelas políticas de drogas têm sido fundamentais na monitorização e denúncia de violações dos direitos humanos cometidas em nome do controle das drogas, bem como na concepção e prestação de programas e serviços que melhor respondam às necessidades das pessoas que servem”, diz a declaração. “Instamos os estados-membros a envolverem significativamente as organizações da sociedade civil, as pessoas que consomem drogas, as comunidades afetadas e os jovens na concepção, implementação e avaliação de políticas de drogas, para garantir que os seus conhecimentos e experiências sejam considerados.”
“Observamos que os estados de exceção e a militarização da aplicação da lei no contexto da ‘guerra às drogas’ continuam a facilitar a prática de múltiplas e graves violações dos direitos humanos”, diz. “Tendo em conta a série de violações dos direitos humanos que a ‘guerra às drogas’ implicou e fazendo eco das recomendações do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, apelamos coletivamente ao fim da militarização da política de drogas, do encarceramento excessivo e da superlotação das prisões, do uso da pena de morte para crimes relacionados com drogas e de políticas que impactam desproporcionalmente os grupos marginalizados.”
A mudança de abordagem já havia sido defendida pelos especialistas da ONU na ocasião do Dia Mundial contra as Drogas. “Tal como fizemos em 2022 e 2023, apelamos aos estados-membros e a todas as entidades da ONU para que fundamentem as suas respostas em matéria de política de drogas na legislação e nas normas internacionais de direitos humanos, incluindo as Diretrizes Internacionais sobre Direitos Humanos e Política de Drogas e a Posição Comum do Sistema das Nações Unidas sobre drogas”, escreveram.
“A ONU, os estados-membros e a comunidade internacional como um todo devem passar da punição para o apoio, através de uma abordagem de redução de danos sensível ao gênero, da descriminalização do consumo de drogas e atividades relacionadas, e da regulamentação responsável de todas as drogas para eliminar os lucros provenientes do tráfico ilegal, da criminalidade e da violência”, conclui o grupo de especialistas.
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