Proposta foi aprovada mesmo com vários parlamentares apontando para a sua inconstitucionalidade
A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (12), por 47 votos a 17, a admissibilidade da proposta de emenda constitucional que criminaliza o porte de qualquer quantidade de droga ilícita. A PEC das Drogas, como também ficou conhecida, foi aprovada em abril pelo Senado Federal.
O texto da Proposta de Emenda à Constituição 45/2023 agora será analisado por uma comissão especial quanto ao seu mérito e, se aprovado, seguirá para o plenário da Câmara, onde deverá ser aprovado em dois turnos de votação para ser promulgado em emenda constitucional.
As deputadas Célia Xakriabá (PSOL-MG) e Fernanda Melchionna (PSOL-RS) e os deputados Chico Alencar (PSOL-RJ) e Helder Salomão (PT-ES) tentaram retirar a PEC de pauta, porém o pedido foi derrubado pela maioria dos membros da comissão.
“Existe uma lei de drogas desde 2006, a decisão do Senado Federal que aprovou a inserção na Constituição dessa criminalização de usuário foi uma reação ao chamado ativismo judicial do Supremo e não é um bom caminho nós aqui no Poder Legislativo agirmos só como reação a outro poder, agirmos num espírito de retaliação”, afirmou Alencar na defesa da retirada de pauta. “Não acreditamos que colocar na Constituição, em meio a outros artigos sobre direitos e garantias individuais da cidadania, seja o melhor caminho para tratarmos dessa questão, que é uma questão de saúde pública, social e humana, muito mais que uma questão criminal; estou me referindo aos usuários de drogas. É uma ilusão, uma utopia, uma sociedade livre de qualquer droga, elas estão aí fazendo lucro de muita gente. Esse caminho da criminalização já provou ser insuficiente e ineficaz.”
O relator da matéria na CCJC, deputado Ricardo Salles (PL-SP), falando contra a retirada da PEC de pauta, justificou a aprovação da proposta com mentiras, dizendo que a “sociedade está tomada pelo problema dos usuários de drogas” e que os consumidores de substâncias “incentivam o tráfico e os crimes a ele relacionados” — isso por que o parlamentar é réu em processo sobre contrabando de madeira.
Para Salles, o texto da PEC deveria ser ainda mais rigoroso, estabelecendo a pena de prisão também para os usuários. A proposta estabelece que deve ser observada a distinção entre os dois, embora sem determinar parâmetros objetivos para isso. De acordo com o parlamentar, a matéria só não foi alterada para não ter que voltar ao Senado para nova análise e garantir mais celeridade à tramitação.
“Nós incluirmos no capítulo de direitos e garantias individuais um tema como esse, desta maneira que se propõe, nós não vamos resolver o que se imagina e, por outro lado, criar uma ilusão e penalizar aqueles que muitas vezes precisam de apoio da sociedade. Porque o que precisa ser tratado com rigor é o tráfico de drogas, aqueles que efetivamente usam o sistema das drogas para ganhar dinheiro e se beneficiar”, declarou o deputado Salomão para defender a retirada da PEC da pauta.
“Essa proposta afronta diversos artigos da Constituição, cláusulas pétreas da Constituição, especialmente aquelas consubstanciadas no artigo 4º e no artigo 5º”, disse o deputado Bacelar (PV-BA), defendendo a retirada da PEC de pauta. “A nossa lei antidrogas é uma lei retrógrada que precisava ser modernizada, mas não, nós estamos retroagindo. Essa política só tem colocado a juventude preta e pobre nas penitenciárias. Essa PEC vem para fortalecer o crime organizado. Nós estamos criando a condição para a crise institucional ao não ouvir a sociedade brasileira.”
De autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a PEC 45 é praticamente uma cópia do que já é previsto na Lei de Drogas (11.343/2006), inclusive deixando a cargo de policiais e juízes a definição de quem é traficante e quem é usuário em casos de flagrantes por posse.
A Lei 11.343 considera crime comprar, guardar, transportar ou trazer consigo drogas para consumo pessoal, com penas como advertência sobre os efeitos das drogas e prestação de serviços à comunidade. No entanto, o texto não contém critérios objetivos para a distinção entre porte para uso pessoal e tráfico, o que vem causando o encarceramento em massa da população negra e periférica.
A PEC sobre drogas trata-se de uma resposta política ao julgamento do Supremo Tribunal Federal que pode descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal. O processo, que analisa a constitucionalidade do artigo da lei de drogas que criminaliza o usuário, já conta com um placar de 5 a 3 pela inconstitucionalidade da criminalização do porte de cannabis para consumo próprio.
O texto foi aprovado na CCJC mesmo com vários deputados apontando para a sua inconstitucionalidade e o retrocesso da política de drogas que sua promulgação irá promover.
Para o deputado Alencar, a PEC vai contra a própria Constituição, inclusive contra o artigo que pretende alterar, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos. “Ela quer colocar na Constituição brasileira, no seu artigo 5º, dois direitos e garantias individuais e, portanto, de valores fundantes da cidadania, um corpo estranho, completamente equivocado”, afirmou o parlamentar.
O deputado Salomão alertou que, se promulgada, a PEC será outro tema para discussão de constitucionalidade no STF. “Quando nós apreciamos e votamos matérias flagrantemente inconstitucionais, nós estamos chamando o STF a se pronunciar. Se esta PEC for aprovada, nós teremos uma nova judicialização”, advertiu.
Para a deputada Melchionna, está havendo uma inversão de valores. “A política de drogas que vigora no Brasil é uma política punitivista. A lei de 2006 prevê o tratamento para o usuário e a despenalização, embora possa cumprir medidas, e hoje cabe à autoridade judicial e policial definir o que é traficante e o que é usuário. O que acontece é que quem é tido como usuário são jovens, pretos, pobres, usuários ou mesmo aviõezinhos descartados pela gangue capitalista que é o narcotráfico, e os verdadeiros narcotraficantes, que estão muito longe das periferias brasileiras, que estão nas áreas nobres, em várias esferas de poder, que têm relações na política e em vários lugares, não são responsabilizados nem julgados”, argumentou a parlamentar.
“Vender a ideia de que penalizar o usuário vai resolver o problema do tráfico é uma mentira, e só ajuda o narcotráfico. Parabéns, aplausos aos que vão seguir financiando a maior gangue capitalista que financia o tráfico de armas, a violência e os assassinatos. Para os traficantes é muito útil seguir nessa lógica da ilegalidade no terceiro maior mercado bilionário do mundo”, enfatizou a deputada.
Flávio Nogueira, deputado do PT pelo estado do Piauí, ressaltou em seu discurso que o consumo de drogas é uma questão de saúde pública. “Nós temos que estar vendo leis e políticas de saúde para que não possamos criminalizar aqueles que são dependentes e que já são, portanto, doentes e que merecem toda a atenção do Estado”, declarou, observando que a criminalização deve recair sobre o tráfico e não sobre o usuário, como estabelece a proposta.
Segundo o deputado Orlando Silva (PcdoB-SP), a Lei de Drogas possui uma “zona cinza” em relação à definição do que diferencia o usuário do traficante. “O que o Supremo Tribunal Federal faz ao examinar a constitucionalidade do artigo 28 é estabelecer essa distinção, não há usurpação à competência legislativa de deputados e deputadas, muito longe disso. Há um esforço de interpretação do texto legal que vai dar melhores condições, inclusive, para que o Estado possa agir”, explicou.
Silva se refere à fake news que muitos dos legisladores que apoiam a PEC espalham sobre o julgamento no STF, a qual diz que o Supremo está legislando sobre a descriminalização das drogas. O fato é que a Corte está exercendo o seu dever de verificar a conformidade da lei de drogas com a Constituição Federal.
A deputada Maria Arraes (Solidariedade-PE) alertou que a PEC tende a agravar as desigualdades sociais e contraria diretrizes de saúde pública e de direitos humanos. “Além do fracasso em cumprir seus objetivos de diminuir o consumo e a circulação, essa conduta [a guerra às drogas] produz ainda mais violência e custa muito caro. A violência gerada no combate às drogas impede o avanço de políticas públicas para populações em territórios considerados dominados pelo crime”, ponderou.
Para Sâmia Bomfim, deputada do PSOL por São Paulo, a PEC é útil para o crime organizado, ao fomentar o encarceramento de pessoas que serão aliciadas pelas facções criminosas nos presídios, como acontece com a aplicação da atual lei de drogas, e ao criminalizar o usuário.
“Responsabilizar o usuário pela atual lógica de segurança pública no Brasil é tudo o que os grandes magnatas do tráfico de drogas mais querem, que o estado brasileiro despenda as suas energias, a sua arma, o seu dinheiro, os seus profissionais de segurança pública e toda a sua atenção para o criminoso. Os primos das Damares, os Zezés Perrellas que existem por aí, os senadores Jorges Seifs e tantos outros, conhecidos ou anônimos, que estão nos verdadeiros palácios de poder, que é quem de fato lucra com a lógica do tráfico de drogas, não é sobre eles que a atenção da população brasileira e do estado brasileiro estará voltada”, declarou Bomfim.
Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), por sua vez, explanou como a PEC irá reforçar a lógica da atual política de drogas, que é “cara, ineficiente, provoca encarceramento em massa, violência policial e genocídio sobre a juventude negra e pobre das periferias e favelas do nosso país e não reduz a demanda”.
“Em um país, que é preciso dizer, estruturalmente racista. No cotidiano se comprova e pesquisas demonstram que pessoas negras, especialmente pobres e da favela, mais facilmente são criminalizadas e tipificadas por tráfico. Portanto, essa PEC tende a reforçar essa lógica abusiva, lesiva, letal, fatal, hipócrita e cara”, alertou Vieira.
O deputado Welter (PT-PR) destacou que as medidas previstas na PEC “vão perseguir o pobre, o preto e o povo fodido das vilas”. “Nós tínhamos que tratá-los com saúde pública, com políticas afirmativas de saúde. Essa matéria está em processo de decisão na Suprema Corte, essa matéria de querer condenar filho de pobre por que ele tem um pequeno vício do uso da maconha é um absurdo”, afirmou.
“Quando a comissão que deveria ser guardiã da Constituição permite o trâmite de uma medida inconstitucional como essa, ela trabalha contra os interesses do povo brasileiro. Essa juventude que for encarcerada em função dos objetivos dessa emenda constitucional vai servir para o PCC, para o crime organizado, e vai ficar especialista nisso no futuro”, continuou o petista.
Para a deputada Xakriabá, o consumo de drogas é um debate de saúde pública e a discussão na esfera criminal deveria ser sobre o narcotráfico. “Temos que tratar as pessoas que têm qualquer sofrimento familiar no que tange essa questão, mas que seja tratado como uma questão de saúde, não como processo de criminalização, que vai diminuir ainda a expectativa de vida”, apontou.
A maior parte da audiência pública na CCJC, no entanto, foi uma show de horrores de mentiras e falso moralismo, com direito a gritos e ofensas aos opositores da PEC. Para defender a aprovação da proposta, os parlamentares proferiram comentários totalmente absurdos, incluindo que maconha causa mais acidentes de trânsito do que o álcool e que o consumo de cannabis provoca câncer.
Os deputados Roberto Duarte (Republicanos-AC), Lucas Redecker (PSDB-RS), Mauricio Marcon (Podemos-RS), Éder Mauro (PL-PA), Eli Borges (PL-TO), Carla Zambelli (PL-SP), Fernando Máximo (União-RO), Cobalchini (MDB-SC), Osmar Terra (MDB-RS), Julia Zanatta (PL-SC), Coronel Fernanda (PL-MT), Cezinha de Madureira (PSD-SP), Sargento Fahur (PSD-PR), Alfredo Gaspar (União-AL), Gilvan da Federal (PL-ES), Sidney Leite (PSD-AM), Lafayette de Andrada (Republicanos-MG), Victor Linhalis (Podemos-ES) e Paulo Bilynskyj (PL-SP) declararam ser veementemente a favor de que o mercado de certas drogas continue sob o domínio do crime organizado e que os usuários sejam criminalizados.
Apenas o deputado Remy Soares (PP-MA) parece não ter lido o texto da PEC antes de votar e declarou que o voto do Progressistas seria sim pela aprovação da proposta por entender que as drogas “é um problema diretamente ligado à saúde pública”.
Se for aprovada na comissão especial, a PEC sobre drogas ainda precisará receber votos favoráveis de três quintos dos deputados (308), em dois turnos de votação, para ser promulgada. No entanto, se houver alguma modificação substancial na proposta, ela voltará ao Senado para nova apreciação.
Imagem de capa: Bruno Spada | Câmara dos Deputados.