A pergunta é o início da busca pelo limiar entre uso e abuso, em uma jornada de descobrimento pessoal que pode nos levar a outra relação com a erva
Já fazia um tempo que a seda king size ficava mais recheada e que o corre durava gradativamente menos. Depois, vieram os efeitos contrários aos desejados: palpitações, insônia, ansiedade, bad trips. Consequências da pandemia?
Insegurança, medo, raiva, luto, solidão. Sentimentos compartilhados por uma nação, e que cada pessoa, a seu modo e com os recursos disponíveis, vem tentando aplacar há mais de um ano. Mas, e quando se percebe que aquilo que te ajudou a segurar as pontas até aqui pode estar fazendo mal? E mais: aquilo em que você dedica tempo, energia e trabalho para justamente desmistificar.
“Senti necessidade de diminuir o consumo de maconha porque meu corpo começou a dar sinais”, conta a paulistana Jéssica Alício (26), comunicadora canábica à frente do perfil Garota Ganja que, dia desses, colocou diante de meus olhos um questionamento que há tempos rondava meus pensamentos: você se considera viciado(a)?
O elefante branco
“Tudo que pode proporcionar algum tipo de prazer tem potencial de vício”, explica a psicóloga Maryane Grocelli. “Alguns exemplos: a comida, o açúcar, o café, sexo, pornografia, videogame, celular. E falando da maconha, sim, ela pode viciar”.
Mas, calma: entre o uso saudável e o problemático, que atinge uma pequena porcentagem de consumidores de maconha, existe um abismo. Afinal, conforme explica a psicóloga, ainda que uma pessoa faça uso cotidiano de determinada substância, lícita ou não, isso não significa que seja viciada, nem que seu hábito seja um problema — então, muito provavelmente, esse texto não é para você, que usa maconha com responsabilidade e cujos únicos malefícios relacionados ao consumo vêm do proibicionismo.
Agora, vem cá: você já se perguntou se está fumando demais? A resposta para essa questão, que é tão particular quanto delicada, começa pela autorreflexão.
“A cota de uma semana já teve vez de ir em um dia”, conta Jéssica, que foi juntando sinais recorrentes, como as pequenas crises de bronquite asmática e o peso no orçamento familiar, para repensar seu próprio uso. “No começo, toda vez que eu fumava era um ritual. Sentava, relaxava. Era um momento em que eu não precisava fazer nada. E chegou ao ponto de eu fumar enquanto lavava louça ou pendurava roupa. Não que eu ache isso errado, mas toda vez, toda hora, é demais”.
Afinal, quanto é demais?
“É um limiar muito difícil entre uso e abuso: pode ser que em um fim de semana você faça um abuso e tudo bem, mas se isso continuar com frequência, não é bom”, explica Maryane. “Por isso, é importante se conhecer, saber os seus limites e sempre estar atento. É uma reflexão constante. Quando você sentir que não está chapando tanto, é um sinal de que talvez esteja ingerindo muito”.
Se o que define a diferença entre o veneno e o remédio é a dose, a resposta sobre o que é excesso quando se trata de cannabis parte de perspectivas e contextos biopsicossociais únicos. Mas, há alguns sinais comuns, como os que a Jéssica apontou, que dizem muito sobre a relação que estabelecemos com a erva. E algumas perguntas podem te ajudar a encontrá-los:
- Meu uso está atrapalhando a minha rotina, meu trabalho, minhas relações?
- O que isso implica na minha vida? Me traz prejuízos?
- Qual é a função da maconha para mim? Em que momentos eu costumo fumar?
- Qual é meu padrão de consumo (frequência, quantidade, qualidade) e como ele mudou com o tempo?
A abordagem do cuidado, da atenção e, principalmente, da honestidade é importante na hora de refletir sobre a gestão do próprio uso de maconha. Um processo super íntimo, mas que pode — e deve — ser construído coletivamente entre quem passa pela mesma situação e, muitas vezes, não sabe a quem recorrer para trocar uma ideia a respeito.
“Fiquei com medo de levar para o Instagram, porque não sabia como seria a reação das pessoas. Será que vão me chamar de hipócrita? Fiquei bem receosa”, confessa a influenciadora canábica. “E quando eu postei, descobri que tinha muita gente na mesma situação, vivendo a mesma coisa e querendo diminuir”.
Glamourização da ganja
Segundo a OMS, o Brasil é o país com a maior taxa de transtorno de ansiedade no mundo. Assim, quem encontra alívio na maconha, ainda que de péssima qualidade e atrelada aos riscos inerentes à proibição, pode duvidar que o (mau) uso de uma planta tão incrível possa, de fato, se tornar um problema.
“É importante parar de romantizar, entender que é uma substância como outras, e apesar de ser muito boa, precisa de certa atenção”, recomenda Maryane. “Quando a nossa única forma de prazer está em fumar um, a gente vai fumar o dia inteiro, ainda mais na pandemia, nesse contexto horrível em que vivemos”.
Quem se propõe a desconstruir o estigma social da cannabis e revelar seus benefícios tem um desafio ainda maior. “Eu acho que temos que falar sobre o que é bom mesmo, e espalhar, mas a gente não pode esquecer que existe uma porcentagem, mesmo que pequena, de risco”, diz Jéssica, que se baseia no conceito de redução de danos para produzir conteúdo, informativo e de humor, sobre o tema nas redes sociais.
Para Maryane, que também produz e compartilha conhecimento sobre drogas nas redes, a satisfação em desmistificar a maconha não vem sem responsabilidade que, na era dos influenciadores digitais, passa pela reflexão sobre como retratamos nossa própria relação com a planta. “Muitas vezes, as pessoas do meio não se interessam ou até mesmo não gostam de falar sobre isso. Mas, acho que é do nosso interesse, enquanto ativistas, falar sobre redução de danos e sobre redução do consumo. É um papel muito desafiador produzir conteúdo sobre isso e fazer um uso responsável de maconha. E aí vem a questão da autorreflexão, de entender o que isso impacta na minha vida e o que pode impactar para outras também”, afirma.
Da reflexão à ação
“O primeiro ponto é perceber”, diz Maryane. “Se você identificou o uso problemático já é um grande passo, muita gente nem chega questionar seu uso de drogas. Segunda coisa é buscar outras formas de prazer, e isso não se aplica somente ao uso de maconha, mas outras substâncias ou coisas que têm potencial de viciar”.
Para Jéssica, encontrar atividades que preencham seu tempo e proporcionem sensações tão boas quanto a ganja é uma estratégia que ajuda a diminuir seu consumo, de seis baseados diários para três, em média — embora ela não tenha estipulado uma meta fixa de redução.
“A gente criou o hábito de caminhar todo dia. Pego minha filha, nossa cachorrinha, e fazemos esse passeio. E isso está se tornando a terapia que eu fazia com o beck, só que de uma outra maneira”, conta. “Lá a gente brinca, tem contato com a natureza, então estou substituindo o baseado por isso, e está me fazendo bem”.
Além da substituição da cannabis como principal ou única fonte de prazer, outras dicas práticas podem ajudar quem está na busca por reduzir o próprio consumo:
- Hábitos saudáveis: alimentação balanceada, prática de exercícios físicos e meditação, por exemplo, são formas de produzir anandamida, presente no sistema endocanabinoide e conhecida como a ‘substância da felicidade’.
- Contato com pessoas queridas: as relações sociais, tão prejudicadas durante a pandemia, são importantes para nossa saúde mental e podem contribuir no processo de diminuição do uso: que tal trocar um beck por uma ligação para um grande amigo ou parente?
- Session enquanto ritual: ressignificar o momento de acender o baseado como algo especial, que envolve uma preparação, é uma forma interessante de valorizar o consumo, e reduzi-lo também. Não banalize o poder deste momento.
- Redução de danos: algumas estratégias, como vaporizar ou usar itens adequados, como piteiras, filtros e papéis finos, ajudam não apenas a reduzir possíveis danos causados pelo uso, mas também o consumo em si. Invista nisso!
- Psicoterapia: encontrar apoio de um profissional sem preconceito e um lugar seguro de acolhimento, escuta e posicionamento é um ponto importante no processo de descobrimento pessoal e, sobretudo, de padrões de consumo. Lembre-se: você não está só, busque ajuda.
Inspirada pela corajosa atitude da Jéssica, que não apenas repensou sua relação com a maconha, mas escancarou a questão, registrando as dores e delícias desta mudança, e usando as estratégias acima, também reduzi meu uso, gradativamente, até zerá-lo — a partir de hoje, pela primeira vez em muito tempo, vou me permitir viver um período indefinido em abstenção, com a certeza que, mesmo desafiador, este processo vai me ajudar a estabelecer uma relação mais saudável, profunda e significativa com a planta que tanto amo.
Imagem de capa: THCamera Photo.