Com o voto da ministra Cármen Lúcia definindo o resultado, julgamento na Suprema Corte declara inconstitucional a criminalização do usuário de cannabis
Durante sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) realizada nesta terça-feira (25), em continuidade ao julgamento sobre a criminalização do porte de maconha para consumo pessoal, a corte chegou à conclusão do Recurso Extraordinário (RE) 635.659, declarando por 6 votos a 5 a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (11.343/2006) para os usuários de cannabis.
Após o ministro Dias Toffoli explicar seu voto, proferido na sessão da semana passada, reiterando que não concorda com a criminalização do usuário de drogas, o ministro Luiz Fux votou contra declarar a inconstitucionalidade do artigo 28 e a ministra Cármen Lúcia votou favoravelmente ao recurso, definindo o resultado do julgamento.
“No caso concreto, estou considerando que o ilícito é administrativo, não penal, por isso estou dando provimento parcial [ao RE]”, disse Cármen Lúcia.
A magistrada sugeriu que a definição da quantidade para a diferenciação entre o porte para consumo e o tráfico de maconha seja estabelecida pelo Poder Legislativo, e que provisoriamente seja adotado o critério de 60 gramas de cannabis ou seis plantas, seguindo o voto do ministro Alexandre de Moraes. O consenso entre os ministros, que ainda será proclamado, segue para adotar 40 gramas como parâmetro.
“Tenho pra mim que a ausência de definição, que deve ser sim do legislador, do órgão da administração pública, do executivo, de agências, leva a uma situação de indefinição que rompe princípios constitucionais: da igualdade, da segurança pessoal…”, observou a ministra.
O parecer do ministro Fux, por sua vez, foi pela não definição de uma quantidade de distinção entre usuários e traficantes, entendendo não ser competência do STF. Após os votos serem proferidos, André Mendonça, que havia sugerido a adoção da quantia de 10 gramas de cannabis para a caracterização do porte para uso, reformou seu voto para não estabelecer o parâmetro.
Dessa forma, nove ministros deram pareceres para que seja fixada uma quantidade que distinga o porte para consumo do tráfico de maconha.
Embora o Recurso Extraordinário (RE) 635.659 conteste a criminalização do porte para uso pessoal de qualquer droga, os ministros da Suprema Corte chegaram ao consenso de restringir a declaração de inconstitucionalidade à cannabis. O ponto principal definido no julgamento foi que o ato de portar maconha para consumo pessoal será levado da esfera penal para a administrativa, eliminando as anotações em registro policial e outras consequências decorrentes de um ilícito penal.
A remoção da pena de prestação de serviços à comunidade — uma das sanções previstas na atual legislação para os usuários — também estava em discussão no julgamento, porém, com o voto da ministra Cármen para manter a redação da lei, esse ponto não obteve maioria na corte.
O julgamento, iniciado há quase nove anos, analisa uma ação apresentada em 2011 pela Defensoria Pública de São Paulo, que pede a inconstitucionalidade da criminalização do usuário de drogas por ofender as garantias da inviolabilidade da vida privada e da intimidade. O RE 635.659 foi apresentado contra uma decisão da Justiça Paulista, que manteve a condenação de um homem flagrado com 3 gramas de maconha dentro do centro de detenção provisória de Diadema (SP).
A ação estava paralisada desde setembro de 2015 e foi retomada em agosto do ano passado. Isso por que, embora o ministro Alexandre de Moraes tenha liberado o processo para voltar à pauta em 2018, os ministros que estiveram à frente do STF durante o governo de Jair Bolsonaro (Toffoli e Luiz Fux) evitaram pautar o julgamento para não criar ainda mais atrito entre os poderes.
Com seis votos pela inconstitucionalidade da criminalização do usuário de maconha (Gilmar Mendes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Rosa Weber e Cármen Lúcia) e cinco contra (Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli e Luiz Fux), o julgamento tem repercussão geral e a solução adotada pelo Supremo deverá ser seguida por todas as instâncias da Justiça em casos semelhantes.
No entanto, se a Corte decidir adotar a tese atualmente aceita pela maioria dos ministros, os usuários de cannabis continuarão correndo o risco de serem presos como se traficantes fossem e a população negra continuará sendo encarcerada pelo crime de tráfico de maconha, mesmo portando quantidades que caracterizem o consumo pessoal.
Isso por que os magistrados que votaram pela inconstitucionalidade da criminalização do porte de maconha aderiram ao voto de Alexandre de Moraes, que mantém o testemunho policial como prova do delito de tráfico. Moraes defende que a palavra da polícia ainda seja válida para a configuração da tipificação penal, ou seja, uma pessoa flagrada com um grama de cannabis poderá ser presa como traficante mesmo sem provas.
Confira, a seguir, como foram os votos anteriores no julgamento:
Gilmar Mendes
O ministro Gilmar Mendes foi o primeiro a votar no julgamento, em agosto de 2015. Relator do caso, Mendes votou pela descriminalização do porte para uso de todas as drogas. Com a retomada do processo no ano passado, ele reajustou seu voto para restringir a medida à maconha e aderiu à proposta de Alexandre de Moraes de presumir como usuárias as pessoas flagradas com até 60 g de cannabis ou que tenham até seis plantas fêmeas.
Na avaliação de Gilmar Mendes, criminalizar a conduta do usuário de drogas resulta em estigmatização e neutraliza os objetivos definidos no sistema nacional de política sobre drogas no que se refere aos esforços de prevenção e redução de danos, além de ofender o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde.
O relator também votou para que nos casos de prisão em flagrante por tráfico de drogas, que são feitas com base na palavra dos policiais, o acusado seja apresentado a um juiz para que este avalie as condições em que foi realizada a prisão e se realmente é necessária a sua conversão em preventiva. Segundo o magistrado, esse procedimento já é realizado em praticamente todos os países democráticos e garante o devido processo legal.
Edson Fachin
Após pedir vista do processo, o ministro Edson Fachin apresentou seu voto em setembro afirmando que a criminalização do usuário é inconstitucional, mas restringiu-se à maconha em razão do caso em julgamento se referir ao porte da planta. O magistrado ressaltou que a posse de drogas para uso pessoal não causa dano a bem alheio, sendo que a pessoa “que furta ou rouba para sustentar seu vício deve ser punida pelas ações delituosas de furto ou roubo, mas não pelo uso em si da droga”.
“Criminalizar o porte de droga para consumo próprio representa a imposição de um padrão moral individual que significa uma proteção excessiva que, ao fim e ao cabo, não protege e nem previne que o sujeito se drogue (correspondendo a um paternalismo indevido e ineficaz) e, por fim, significa uma falsa proteção da sociedade, dado que já há respostas penais previstas para as eventuais condutas ofensivas que o consumidor de drogas possa realizar”, argumentou o ministro em seu voto.
Fachin entende que os parâmetros para diferenciar o porte para uso do tráfico devem ser fixados pelo Congresso Nacional. Ele propôs que o Poder Executivo estabeleça parâmetros provisórios, enquanto o Legislativo não definir uma quantidade limítrofe de porte de maconha para o enquadramento como usuário ou traficante. O ministro, no entanto, defende que o Judiciário deve atuar até que a lacuna seja preenchida.
Luís Roberto Barroso
Na mesma sessão em que Fachin proferiu seu voto, o ministro Luís Roberto Barroso se manifestou pela descriminalização do porte de maconha para uso pessoal. Ele foi o primeiro a sugerir um parâmetro de diferenciação entre traficante e usuário, propondo a quantidade de até 25 gramas de cannabis ou seis plantas fêmeas como posse para consumo próprio.
Barroso seguiu o entendimento de Fachin de que a criminalização do consumidor de maconha fere o direito à privacidade. O magistrado frisou que o Estado não tem o poder de interferir na vida privada das pessoas e ainda que a atual política de drogas contribuiu para os altos índices de encarceramento, principalmente da população negra e periférica.
Em agosto de 2023, quando o julgamento voltou ao Plenário do STF, Barroso ponderou aumentar para 100 g a quantidade de maconha que caracteriza o porte para uso por entender que seja mais eficiente para “enfrentar o problema do hiperencarceramento de jovens”. Mas para atingir consenso com os demais votos concordou com o limite proposto por Moares — 60 gramas.
Alexandre de Moraes
O ministro Alexandre de Moraes votou pela descriminalização do usuário de maconha e sugeriu a quantidade de até 60 gramas ou seis plantas fêmeas para a caracterização do porte para consumo pessoal. Esse entendimento foi embasado em um estudo realizado pela Associação Brasileira de Jurimetria que analisou boletins de ocorrência no estado de São Paulo e evidenciou que há tratamento diferenciado de acordo com a cor da pele e escolaridade.
Moraes destacou a necessidade de equalizar uma quantidade média padrão, cuja presunção é relativa, como um critério objetivo para realizar essa distinção — porém, não como o único critério. “O estudo reflete o que nós verificamos nos presídios: o aumento de jovens sem instrução, pretos e pardos presos, principalmente por tráfico de entorpecentes, que acabam sendo cooptados por facções, em um círculo vicioso que nós acabamos criando, triplicando, em 6 anos, o número de presos por tráfico de drogas”, diz o ministro em seu voto.
O magistrado ressaltou ainda que a Lei 11.343/2006, que despenalizou o uso pessoal e, segundo ele, “veio para melhorar a situação do usuário”, enquanto endureceu as penas para o tráfico de drogas, obteve resultados diversos do que foi pretendido. Segundo ele, de acordo com dados do Departamento Penitenciário, entre 2007 e 2013, a proporção de presos por tráfico de drogas aumentou de 15,5% para 25,5%, além do aumento de 80% da população prisional do país no mesmo período. Isso revela um aumento exponencial do encarceramento, sobretudo pelo crime de tráfico, por conta da prisão de pequenos traficantes que, até então, eram enquadrados como usuários.
Rosa Weber
Ainda em agosto do ano passado, a então ministra Rosa Weber antecipou seu voto após o ministro André Mendonça pedir vista do processo. Ela também votou pela descriminalização do porte de maconha para consumo próprio e seguiu a sugestão de Alexandre de Moraes para fixar a quantia limítrofe de 60 g de cannabis para a caracterização do uso pessoal.
A ministra destacou em seu voto que as visitas que fez como presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) às unidades prisionais do país “escancaram” a realidade que atual Lei de Drogas produziu: “prisões cheias de meninos e meninas negros e pardos e, na imensa maioria, em função do crime de tráfico”.
“Isso (a criminalização do uso) potencializa o estigma que recai sore o usuário e acaba por aniquilar os efeitos pretendidos pela lei de drogas de reinserção social e, somado à falta de diferenciação, fomenta a condenação dos usuários como se traficantes fossem”, afirmou a ministra em seu voto, ressaltando ainda que o uso de substâncias coloca em risco a saúde individual e se insere na autonomia privada.
Cristiano Zanin
O voto antecipado de Rosa Weber veio após o parecer do ministro Cristiano Zanin, que votou contra a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. Zanin reconheceu que a mera despenalização da conduta do usuário não melhorou o problema das drogas, “uma vez que as camadas vulneráveis estão sendo encarceradas em massa”.
Para o magistrado, no entanto, a descriminalização do porte de drogas para consumo apresenta “problemas jurídicos”. “Não tenho dúvida de que os usuários de drogas são vítimas do tráfico, mas se o Estado tem o dever de zelar pela saúde todos, e a descriminalização poderá contribuir ainda mais para esse problema de saúde”, disse o ministro.
Apesar de não reconhecer a inconstitucionalidade da criminalização do usuário, Zanin sugeriu a quantidade de 25 gramas de maconha ou seis plantas como critério para diferenciação entre porte para uso e tráfico.
André Mendonça
Na sessão realizada em março deste ano, o ministro André Mendonça apresentou seu voto-vista seguindo o entendimento de Zanin, e contrariando a tese de que a criminalização do usuário de substâncias fere a Constituição. Mendonça iniciou seu parecer demonizando a maconha, afirmando que a inalação da planta para quaisquer fins “tem uma grande chance de causar dano e deve ser proibida ou evitada”.
Mendonça proferiu um voto baseado em moralismo e ideologia, alegando, por exemplo, que até mesmo o uso cosmético da cannabis “pode atingir a família e a sociedade”. O magistrado ainda lançou mão de informações falsas para justificar seu posicionamento, como a de que o consumo de maconha está associado “transtornos mentais, cognitivos e estruturais do sistema nervoso central”.
Em relação à fixação de um parâmetro para distinguir usuários de traficantes, Mendonça sugeriu que o Legislativo estabeleça o critério de diferenciação e que seja adotada provisoriamente a quantidade-limite de 10 gramas de cannabis para a caracterização do porte para uso — segundo o ministro, essa quantia é o suficiente para a confecção de 34 baseados.
Nunes Marques
O ministro Nunes Marques votou na mesma sessão que Mendonça e seguiu a tese do mesmo, apresentando um parecer pela manutenção da criminalização do usuário de maconha. A justificativa do magistrado para seu posicionamento se embasou em uma série de informações sem nenhuma ligação com o uso de cannabis, como as mortes por overdose de fentanil nos Estados Unidos.
Nunes afirmou que declarar inconstitucional a criminalização do porte de maconha para uso pessoal favoreceria o tráfico de drogas, pois isso consolidaria um “mercado consumidor legítimo”. Ele também argumentou que, ao manter a produção e comércio proibidos, não haveria nenhum tipo receita arrecadada com impostos para reverter a programas de tratamento de usuários, por exemplo.
O ministro também se utilizou de um discurso moralista para embasar seu voto, afirmando que a descriminalização das drogas ilícitas induziria o consumo de entorpecentes em escolas e outros locais frequentados por crianças e que a “preocupação da maioria das famílias brasileiras não é se o filho vai preso ou não”, mas sim “que a droga não entre na sua residência”.
Embora seja contra a descriminalização, Nunes defendeu que deve haver um parâmetro objetivo para distinguir o usuário do traficante e acompanhou a proposta do ministro Zanin de 25 gramas de maconha ou seis plantas como quantidade limítrofe.
Dias Toffoli
O ministro Dias Toffoli também votou contra o RE 635.659, entendendo ser constitucional a criminalização de quem porta de drogas para consumo próprio. Toffoli embasou seu parecer no que foi uma verdadeira aula sobre as consequências negativas das políticas proibicionistas, denunciando que a “guerra às drogas” promoveu o racismo e a xenofobia e que a primeira lei de proibição da maconha foi promulgada no Brasil para criminalizar as práticas culturais da população negra.
O magistrado criticou os órgãos de deliberação do Poder Público por se omitirem e deixarem a questão chegar até o Supremo. Ele ressaltou que a discussão sobre ilicitude do porte de drogas “é uma competência, sim, de uma corte constitucional”, e que há “um clamor da sociedade e um comando constitucional” para que o tema seja analisado pela corte.
Toffoli ainda afirmou que a criminalização do usuário de substâncias “não é a melhor politica pública de um Estado social-democrático de direito” e apontou para o fracasso da política de drogas brasileira, que “intensificou a violência e a corrupção, sem diminuir o consumo”, e resultou no “superencarceramento”. “A resposta punitiva trouxe efeitos prejudiciais tanto para os usuários quanto para a sociedade, incluindo encarceramentos indevidos, gastos públicos ineficientes e a estigmatização dos usuários”, advertiu o ministro.
Apesar de toda a crítica ao proibicionismo, Toffoli finalizou o voto afirmando que o artigo 28 da lei drogas “descriminalizou a conduta nele prevista”, uma vez que não prevê pena de prisão ou reclusão ao usuário, e, dessa forma, é constitucional. A tese apresentada por Toffoli abriu uma terceira via de entendimento no julgamento, segundo a qual o porte de substâncias para uso pessoal já não é considerado crime por não atender à definição da Lei de Introdução do Código Penal.
No entanto, o magistrado ignorou o fato de que milhares de pessoas são condenadas todos os anos pelo crime de porte de drogas para consumo pessoal, sendo muitas vezes vítimas de violência policial e correndo o risco de terem futuras penas de prisão aumentadas.
De qualquer forma, Toffoli reconheceu que a lei falhou no suposto objetivo de retirar o caráter criminal da conduta de portar drogas ilícitas, pois “não foi suficiente por si só para estabelecer aquilo que ela objetivava fazer, que era descriminalizar o usuário”. O magistrado sugeriu que a solução para esse problema deve partir de políticas públicas elaboradas pelo Poder Legislativo, que devem incluir a oferta de tratamento para “dependentes químicos”, e de uma regulamentação por parte da Anvisa que estabeleça a quantidade de maconha que diferencie o consumidor do traficante.
Imagem de capa: Agência Brasil.