Estudo brasileiro mostra que o sistema endocanabinoide pode ajudar no tratamento do câncer, controlando o crescimento dos tumores e promovendo a morte de células cancerígenas
O papel terapêutico da cannabis no tratamento do câncer acaba de ganhar novo respaldo científico. Um estudo publicado recentemente na revista Oncology Reviews destaca os avanços da ciência na compreensão do sistema endocanabinoide (SEC) e seu impacto direto sobre células tumorais, apontando mecanismos biológicos promissores que incluem inibição do crescimento celular, indução à morte programada e bloqueio da formação de novos vasos sanguíneos em tumores.
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A publicação, intitulada “The endocannabinoid system in cancer biology: a mini-review of mechanisms and therapeutic potential”, foi conduzida por um grupo multidisciplinar de pesquisadores brasileiros, com atuação em instituições de destaque como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a UNIGRANRIO/AFYA.
O artigo é assinado por Kaio Cezar Rodrigues Salum (Hospital Universitário Clementino Fraga Filho/UFRJ e Laboratório de Genética Humana do Instituto Oswaldo Cruz – Fiocruz), Gabriel Brendo Alves Miranda, Alessandra Lima Dias, João Regis Ivar Carneiro (UNIGRANRIO/AFYA), Patrícia Torres Bozza (Laboratório de Imunofarmacologia – Fiocruz), Ana Carolina Proença da Fonseca (UNIGRANRIO/AFYA, Fiocruz e UFRJ) e Tamara Silva (UNIGRANRIO/AFYA).
O que é o sistema endocanabinoide?
O SEC é uma rede de sinalização que envolve receptores celulares (CB1 e CB2), substâncias produzidas naturalmente pelo corpo chamadas endocanabinoides e as enzimas que os metabolizam. Ele participa da regulação de funções como dor, sono, inflamação, apetite e imunidade. No contexto do câncer, sua ativação parece interferir diretamente nos mecanismos que sustentam a vida das células tumorais.
Enquanto os receptores CB1 são mais abundantes no sistema nervoso central, os CB2 se concentram principalmente no sistema imunológico. A ativação desses receptores por canabinoides exógenos — como o tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD), derivados da planta cannabis — mostrou, em diferentes modelos experimentais, efeitos antitumorais relevantes.
Canabinoides versus células tumorais
O estudo revela que o CBD foi capaz de reduzir significativamente a proliferação de células de câncer pancreático, atuando sobre a via de sinalização PAK1, envolvida no crescimento celular. Já o THC demonstrou induzir apoptose — morte programada das células — em linhagens de câncer colorretal, por meio da inibição de mecanismos de sobrevivência como as vias RAS-MAPK e PI3K-AKT.
Além disso, os canabinoides mostraram inibir a angiogênese, processo no qual o tumor cria novos vasos sanguíneos para se alimentar. Em estudos com câncer colorretal, o CBD suprimiu a expressão de fatores angiogênicos como o VEGF, limitando a nutrição do tumor e, por consequência, seu crescimento.
Desafios para a aplicação clínica
Apesar dos resultados encorajadores em modelos pré-clínicos, os pesquisadores ressaltam que há obstáculos consideráveis para que esses tratamentos se tornem realidade na prática médica. A heterogeneidade dos tumores, a variação individual na resposta aos canabinoides e a complexidade da farmacocinética desses compostos — ou seja, como eles se distribuem e agem no corpo — ainda são barreiras a serem vencidas.
“Ainda que os dados em laboratório sejam promissores, é fundamental realizar ensaios clínicos robustos que validem a segurança, a dosagem ideal e a eficácia desses tratamentos em humanos”, apontam os autores.
Caminhos para o futuro
Com o avanço da regulamentação da cannabis em diversos países e o crescimento do interesse da indústria farmacêutica, o estudo indica que é apenas uma questão de tempo até que novos medicamentos à base de canabinoides sejam desenvolvidos com foco em indicações oncológicas específicas.
A pesquisa reforça a necessidade de políticas públicas que incentivem a pesquisa com cannabis medicinal e deem suporte a estudos clínicos de larga escala, especialmente em países com alto índice de incidência de câncer.
O artigo completo está disponível na revista Oncology Reviews e pode ser acessado neste link.