Estudo do Insper revela que pessoas pardas e pretas são consistentemente mais propensas a serem rotuladas como traficantes
Mais um estudo mostra que a cor da pele é um dos fatores determinantes para o enquadramento como traficante ou usuário das pessoas flagradas com drogas ilícitas. O levantamento revela que a polícia de São Paulo enquadrou 31.000 pessoas pretas e pardas como traficantes enquanto, em contextos semelhantes, brancos foram considerados usuários.
O estudo, realizado pelo Núcleo de Estudos Raciais do Insper, analisou 3,5 milhões registros de ocorrência realizados entre 2010 e 2020 pela polícia do Estado de São Paulo. Os pesquisadores compararam casos de detidos que tinham o mesmo gênero e grau de instrução e a mesma quantidade da mesma droga, com a única diferença sendo a cor/raça. A análise revelou que a chance de uma pessoa preta ou parda ser enquadrada como traficante é 1,5% maior que a de uma pessoa branca.
Essa probabilidade é ainda maior nos casos envolvendo “drogas leves”, como a maconha, e em pequenas quantidades, “refletindo estereótipos arraigados que associam estes grupos raciais a atividades ilícitas”, segundo os autores. Em contrapartida, o impacto racial diminui com “drogas pesadas” como o crack.
“Demonstramos que a identidade racial influencia significativamente a probabilidade de ser classificado como traficante de drogas e não como mero consumidor. Esta distinção acarreta consequências jurídicas e sociais substanciais, tornando as nossas conclusões particularmente relevantes para os decisores políticos e as agências responsáveis pela aplicação da lei”, escreveram os pesquisadores.
Os dados revelam um aumento geral no total de apreensões de drogas desde 2010 (135.073) até o pico em 2017 (447.802), enquanto em 2020 houve 352.663 registros de apreensão em todo o estado São Paulo. A taxa de casos enquadrados como tráfico aumentou de 79,8% em 2010 para 84,3% em 2020, com algumas flutuações durante o período, sendo que a taxa mais baixa foi em 2015 (74,2%).
A pesquisa demonstra que houve uma diminuição constante no percentual de apreensões de drogas envolvendo pessoas brancas ou asiáticas, de 64,7% em 2010 para 58,3% em 2020, enquanto o número de pardos envolvidos nas ocorrências aumentou de 28% em 2010 para 34,5% em 2020, e o de pessoas negras se manteve relativamente estável em torno de 7%.
A maconha é a droga mais comum, sendo apontada em 65,2% dos casos de consumo e 36,3% das apreensões enquadradas como tráfico. Já a cocaína está por pouco no topo da lista de tráfico, com 37% das pessoas detidas sendo enquadradas como traficantes e 22,3% como usuárias. O crack aparece em 10,9% das ocorrências de consumo e em 24,1% das de tráfico.
Sobre a disparidade racial observada nas ocorrências, os autores afirmam que isso “sugere um preconceito enraizado nas práticas de aplicação da lei e nos processos judiciais, que tendem a criminalizar a raça juntamente com o crime”.
Os pesquisadores também investigaram o papel da composição racial dos municípios e descobriram que em áreas com maiores percentuais de jovens pardos ou pretos a probabilidade de ser indiciado como traficante diminui. “Isto poderia implicar que o aumento da visibilidade social destes grupos raciais poderia mitigar alguns aspectos do perfil racial, normalizando a diversidade dentro dessas comunidades”, observaram em seu artigo.
Eles destacam ainda como a Lei de Drogas (11.343/2006) em vigor no país contribuiu para o encarceramento em massa. Isso por que, embora tenha despenalizado o delito de porte de drogas para uso pessoal, a legislação não estabeleceu critérios objetivos para a distinção entre usuário e traficante. “A lei estipula que a quantidade da droga em posse é um fator determinante, mas não especifica os valores-limite, deixando tais determinações ao critério dos juízes”, afirmam.
A ausência na lei 11.343 de uma quantidade limítrofe para a caracterização do que é porte para uso e o que é tráfico é um dos pontos discutidos no julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que trata da constitucionalidade da criminalização do usuário de drogas. Os ministros analisam se é constitucional tratar a posse de substâncias como um ilícito penal, como acontece na atual legislação, e debatem a fixação de uma quantia para a diferenciação entre traficante e consumidor.
O placar atual do julgamento está em 5 a 4 pela declaração de inconstitucionalidade da criminalização do porte de maconha para consumo pessoal. Embora haja divergências entre as teses, com o ministro Dias Toffoli apresentando um terceiro entendimento, segundo o qual a posse de drogas já descriminalizada por não incorrer em pena de prisão, todos os ministros que votaram até o momento concordaram que deve ser fixada uma quantidade-limite para caracterizar o usuário.
Segundo os autores do estudo, as descobertas sublinham a “necessidade crítica de formação em matéria de aplicação da lei que aborde os preconceitos raciais e promova a justiça nas classificações dos delitos relacionados com drogas”. “Além disso, o sistema judicial deve aperfeiçoar as suas diretrizes para diferenciar claramente usuários de traficantes, reduzindo assim o espaço discricionário que permite que os preconceitos raciais influenciem os resultados jurídicos”, alertaram.
“Nosso estudo contribui para o discurso mais amplo sobre a discriminação racial no sistema de justiça criminal, fornecendo evidências empíricas robustas de como os crimes relacionados às drogas são indiciados no Brasil. Apela a uma reavaliação das atuais leis e práticas de aplicação da legislação em matéria de drogas, para garantir que sejam aplicadas de forma equitativa em todos os grupos raciais. Ao reconhecer e abordar essas disparidades raciais, o Brasil pode dar passos significativos em direção a um sistema jurídico mais justo e equitativo”, conclui o artigo.
Imagem de capa: Huseyn Naghiyev | Vecteezy.