Saúde, segurança pública e combate ao tráfico estão longe de ser o foco desse embate. Entenda mais no artigo da advogada antiproibicionista Bianca Cardial
Estamos atualmente presenciando um embate entre legislativo e judiciário. De um lado o STF, que ainda posterga o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635659, com repercussão geral (tema 506), em curso há nove anos e cujo placar está em 5 votos a 3 pela descriminalização do porte de maconha e que, portanto, já é maioria para estabelecer um quantitativo que diferencie usuário de traficante, estando pendente apenas definir qual a quantidade específica; do outro, o Congresso Nacional que tenta aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 45/2023 — PEC das Drogas, apresentada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, em setembro de 2023, e que visa inserir na Constituição a determinação de que é crime a posse ou porte de qualquer quantidade de droga ou entorpecente “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.
Aprovada no Senado em abril deste ano por 53 x 9, a PEC 45/2023, como era de se esperar, foi também aprovada, nesta quarta-feira (12), por 47 x 17, pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJC) da Câmara dos Deputados, cujo relator é o deputado Ricardo Salles (PL-SP) que afirmou que os usuários têm responsabilidade direta sobre crimes cometidos por traficantes, já que são, segundo ele, “aqueles que incentivam o tráfico e os crimes a ele relacionados”.
Agora a PEC será analisada por uma comissão especial quanto ao seu mérito e, se for aprovada, seguirá para votação no plenário da Câmara.
A omissão de dezoito anos do legislador em definir os critérios para diferenciação entre usuário e traficante — nada por acaso — tornou a propositura desta PEC e sua provável aprovação possível. Desde 2006, com a entrada em vigor da Lei 11.343 (Lei de Drogas), são previstas sanções alternativas — como medidas educativas, advertência e prestação de serviços — para quem compra, porta, transporta ou guarda drogas para consumo pessoal. A norma também sujeita às mesmas penas quem semear, cultivar ou colher plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de produtos ou substâncias capazes de causar dependência física ou psíquica.
Hoje o Supremo Tribunal Federal julga se será declarado inconstitucional enquadrar como crime unicamente o porte de maconha para uso pessoal. Como a matéria tem repercussão geral, todas as instâncias da Justiça deverão seguir a solução adotada pelo STF quando forem julgar casos semelhantes. O Supremo discute ainda a fixação de parâmetros para diferenciar porte e produção para consumo próprio do tráfico. Isto ocorre por que, embora a Lei de Drogas tenha deixado de punir com prisão o porte e produção de entorpecentes para consumo próprio, não foram estabelecidos critérios objetivos para definir as duas situações.
E é nisso que se sustenta a PEC das drogas que pretende instituir a proibição do porte e da posse de qualquer quantidade de droga ilícita, com a desculpa de que estaria combatendo o tráfico. Porém, assim como a Lei de Drogas, a proposta não traz critérios claros de como seria feita a diferenciação entre consumo pessoal e tráfico.
O resultado disso? A criminalização do usuário e do paciente e o aumento do encarceramento em massa das populações mais vulneráveis à repressão, aqueles que são as reais vítimas do proibicionismo e suas interseccionalidades.
Ao passo que o Judiciário caminha para dar uma pequena vitória a essas populações, vem o Legislativo com sua onda reacionária e ultraconservadora, que não se mostra passageira, pelo contrário, e tenta por seus meios manter o status quo da sociedade brasileira, racista, classista, que privilegia aqueles que já são detentores de privilégios.
A saúde, a segurança pública, o combate ao tráfico, essas questões estão longe de ser o real foco desse embate. Quem sairá vencedor, não sabemos. Mas já estamos perdendo, todos nós enquanto sociedade.
Imagem em destaque: Pixabay | Brent Barnett (futurefilmworks).