A Anvisa extrapolou seu poder regulatório ao criar restrições sem amparo legal, segundo o relator do caso
O Tribunal de Justiça de São Paulo, através de sua 10ª Câmara de Direito Público, concedeu mandado de segurança a uma farmácia de manipulação para que esta possa comercializar produtos derivados de cannabis sem o risco de sofrer sanções das autoridades de vigilância sanitária.
A Manos Farma sofreu sanções do município de São Paulo com base em resolução da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que restringe às farmácias sem manipulação o direito de dispensar produtos de cannabis. O ato normativo (RDC 327/2019), no entanto, cria uma distinção que não tem amparo legal, visto que as leis que dispõem sobre as atividades farmacêuticas e o controle sanitário do comércio de medicamentos não fazem diferenciação entre as farmácias.
O relator do recurso, desembargador Antonio Celso Aguilar Cortez, destacou em seu voto que a 10ª Câmara de Direito Público “já se manifestou, majoritariamente, no sentido de que a Anvisa desbordou do poder regulamentar ao editar a Resolução RDC n. 327/2019, que impede a manipulação de fórmulas magistrais com uso de derivados ou fitofármacos à base de cannabis, porém permite que produtos dessa mesma natureza sejam comercializados pelas farmácias em geral (sem manipulação) e drogarias”.
Em seu relatório, o magistrado esclareceu que, de acordo com legislação, tanto as farmácias com manipulação quanto as sem manipulação, ou drogarias, estão autorizadas a realizar as mesmas atividades de comércio e dispensação de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos. Segundo o desembargador, a resolução da Anvisa impôs às farmácias com manipulação indevida desvantagem em relação às demais, extrapolando o poder regulatório da agência e limitando o livre exercício da atividade econômica.
“O poder regulamentar da Anvisa não pode criar obrigação nem restrição não prevista em lei, tampouco impedir a manipulação de medicamentos ou fitoterápicos sem vedação legal expressa”, concluiu Aguilar Cortez.
Os desembargadores Paulo Sérgio Brant de Carvalho Galizia e José Eduardo Marcondes Machado seguiram o voto do relator.
Em março, a Justiça de Alagoas autorizou uma farmácia de manipulação de Arapiraca a manipular e comercializar remédios à base de maconha. O juiz Manoel Cavalcante, da 18ª Vara Cível da Capital, determinou que a vigilância sanitária se abstenha de aplicar sanções administrativas à PB Comércio e Produtos Farmacêuticos por comercializar produtos derivados de cannabis.
Da mesma forma que o magistrado paulista, Cavalcante entendeu que a RDC 327 extrapola o poder regulamentar e cria restrição às farmácias de manipulação não previstas nas leis federais, ferindo o princípio da legalidade previsto na Constituição Federal.
Outro caso semelhante foi julgado pela 3ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo, em fevereiro deste ano. A farmácia de manipulação Pharmacia Antiga e Avanzata, de Assis (interior de SP), foi autorizada a adquirir e comercializar medicamentos derivados da maconha. Para o juiz Luís Manuel Fonseca Pires, a resolução da Anvisa parece “impor, em via reflexa, tratamento desigual entre drogarias (farmácias sem manipulação) e as farmácias com manipulação”.
Em dezembro, o juiz Peter de Paula Pires, da 5ª Vara Federal de Ribeirão Preto (SP), autorizou uma farmácia de manipulação a fabricar remédios à base de cannabis, cuja comercialização já tenha sido autorizada pela Anvisa. A decisão ressalta que a empresa deve observar os critérios da agência sobre a concentração de canabinoides: os produtos devem possuir predominantemente canabidiol (CBD) e não mais que 0,2% de tetraidrocanabinol (THC).
“Não é justificada a reserva de mercado para produtores internacionais que podem comercializar para o território nacional livremente o que fabricam. A autorização jurisprudencial para que pessoas físicas obtenham tais produtos de forma artesanal torna incompatível impedir a autora, com longa expertise na fabricação de medicamentos, de fabricá-los de forma profissional”, registrou o juiz federal.
As farmácias de manipulação são um importante instrumento de ampliação do acesso à cannabis para uso medicinal, uma vez que a atual regulamentação restringe o acesso ao tratamento a uma pequena parcela da população que pode arcar com os custos de importação ou de aquisição dos produtos autorizados em território nacional. Outra via de acesso é através das associações de pacientes, que oferecem óleos a preços mais acessíveis — essas entidades, no entanto, ainda estão em um limbo jurídico por falta de regulação e não dão conta de atender à demanda.
Em relação aos produtos de cannabis atualmente permitidos por resoluções da Anvisa, as farmácias de manipulação dão um passo à frente proporcionando ao paciente um tratamento personalizado e mais eficaz, com dosagens específicas conforme a prescrição médica. Vários estudos já demonstraram como as interações entre os constituintes da maconha (canabinoides, terpenos e flavonoides) desempenham um papel nos efeitos terapêuticos, sendo que a ação combinada dos compostos da planta supera a eficácia da substância isolada.
Os produtos de cannabis comercializados pelas drogarias sob a atual regulamentação, por sua vez, possuem somente o CBD em sua composição, e quando muito uma quantidade ínfima de THC — o que não atende uma parcela expressiva de pacientes, considerando que muitas condições necessitam dos dois canabinoides.
Imagem de capa: Pixabay | Julia Teichmann (CBD-Infos).