A “guerra às drogas” provoca destruição ambiental, aponta relatório

As políticas internacionais em matéria de drogas estão promovendo a destruição do meio ambiente, a violência e o crime organizado em muitos países com áreas vitais de biodiversidade, diz relatório
O sistema global de proibição das drogas está provocando a destruição ambiental em muitos países com ecossistemas extremamente valiosos e ameaçados e minando a ação climática, segundo um novo relatório de uma coligação internacional de grupos dos movimentos de reforma da política de drogas e ambientalistas.
Em resposta ao apelo da ONU por medidas para proteger e restaurar as florestas, os decisores políticos, os ministérios ambientais, as ONG e os grupos da sociedade civil em todo o mundo estão trabalhando para implementar respostas urgentes para proteger os maiores sumidouros de carbono do planeta e mitigar as alterações climáticas.
“Mas os seus esforços fracassarão enquanto aqueles que estão empenhados na proteção ambiental negligenciarem o reconhecimento e a luta contra o elefante na sala”, afirma o documento, se referindo à falta de posicionamento e atitude do movimento ambientalista em relação ao sistema internacional de proibição das drogas, “popularmente conhecido como ‘guerra às drogas’”.
O relatório foi elaborado pela Coalizão Internacional para a Reforma das Políticas de Drogas e Justiça Ambiental, uma aliança global de ativistas, artistas e acadêmicos tanto do movimento de reforma das políticas de drogas como do movimento ambiental e climático formada em fevereiro. A coligação possui membros da Bolívia, Brasil, Colômbia, Mianmar, Países Baixos e Reino Unido.
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Os autores afirmam que é cada vez mais reconhecido que os grupos criminosos estão a financiar a grilagem de terras, o desmatamento, o tráfico de madeira e de vida selvagem e a mineração ilegal, e que “as autoridades, em todos os níveis, muitas vezes aprovam e lucram com essas atividades ilegais”.
“A proibição criou uma situação em que mercadorias extremamente lucrativas estão a ser produzidas e traficadas através de alguns dos espaços mais remotos e com maior biodiversidade do mundo”, afirma o documento. “O principal desafio é a forma como os mecanismos de proibição empurram a produção e depois a erradicação de drogas para áreas remotas, ricas em biodiversidade e de particular importância ambiental.”
Os produtos oriundos de operações ilegais de drogas são transportados através de costas remotas, savanas, florestas e oceanos, e traficados por terra e mar com a ajuda de agentes portuários e fronteiriços. Esses espaços de transbordo, aponta o relatório, incluem grande parte da Amazônia brasileira e as florestas do Paraguai.
Além dessas rotas, o artigo também menciona os países da África Ocidental que recebem remessas de drogas da América do Sul, incluindo aqueles que se encontram em pontos críticos de biodiversidade das florestas da Alta Guiné (Guiné, Serra Leoa, Libéria, Costa do Marfim e Gana), as florestas da América Central e do México, que ficam ao longo das rotas do norte para o tráfico de cocaína, heroína e maconha para fora da América do Sul, e as florestas do Laos, Mianmar e Tailândia, através das quais a heroína é exportada para várias regiões.
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“Se os mercados da coca, da cannabis e da papoula fossem legais, essas culturas seriam cultivadas onde quer que os produtores tivessem uma vantagem competitiva no contexto do comércio global, tal como o café e o tabaco. De fato, nos poucos casos em que o ópio, a cannabis e a coca são cultivados legalmente — para abastecer as indústrias farmacêuticas e de bebidas — o seu cultivo ocorre em contextos agrícolas convencionais”, escreveram os autores.
O relatório destaca que quando os pequenos agricultores cultivam culturas de drogas ilícitas nas margens da floresta, ou os traficantes transportam os seus produtos através das florestas tropicais, é por que a proibição os empurrou para esses lugares.
As áreas ricas em biodiversidade para onde as operações ilegais de drogas são empurradas também sofrem com outras atividades ambientalmente prejudiciais que são financiadas pelos lucros provenientes do tráfico.
“Quando esse negócio [drogas ilegais] está em áreas ricas em recursos, os atores enriquecidos pelos lucros das drogas fazem o que as empresas de todo o mundo fazem: procuram investir o seu dinheiro e diversificar as suas carteiras de rendimentos”, explicam os autores, apontando que os comércios ilegais, como o de vida selvagem, madeira tropical e ouro, e agroindústrias legais, como carne bovina, óleo de palma e soja, estão entre as atividades particularmente suscetíveis à capitalização dos lucros das drogas.
Os lucros do tráfico de drogas acabam funcionando como “um banco de investimento para uma série de outras empresas criminosas organizadas prejudiciais ao ambiente, indústrias extrativistas e agroindústrias com utilização intensiva de carbono”.
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Para exemplificar como a proibição financia também outras atividades prejudiciais ao meio ambiente, o documento cita a ligação entre o tráfico de drogas e a mineração ilegal no Brasil e no Peru, e a destruição de florestas em Honduras, onde políticos e policiais participaram de um esquema milionário de comércio de cocaína e lavagem de dinheiro com aquisição de terras indígenas e protegidas.
O artigo aborda ainda a grande disparidade “entre os perseguidos e os poderosos” no tráfico de drogas, destacando que a proibição provoca um ciclo de pobreza que atinge os mais vulneráveis da sociedade.
“As pessoas mais afetadas não são os responsáveis pelo tráfico de droga — em vez disso, são aqueles que se encontram nos níveis mais baixos do comércio que são perseguidos e criminalizados”, afirmam os autores, ressaltando que é justamente o comércio de substâncias ilícitas que oferece “um rendimento digno ou meios de sobrevivência, onde não existem outros.”
Segundo o relatório, cerca de 200 mil famílias ganham a vida cultivando coca na Colômbia. “Especialmente em contextos de guerra civil e deslocamento, o cultivo de drogas pode ser uma das poucas oportunidades econômicas disponíveis nas áreas rurais e pode ser uma tábua de salvação essencial para indígenas marginalizados e povos deslocados e migrantes rurais que vivem nas margens da floresta.”
Os autores denunciam que a narrativa da guerra às drogas forneceu uma justificativa para o “controle social dos ‘indesejáveis’, sejam eles imigrantes, minorias raciais, comunidades indígenas ou oponentes políticos e ideológicos”, e que isso se tornou uma característica definidora da repressão às drogas.
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Enquanto os pequenos agricultores desfavorecidos são os principais alvos da guerra às drogas, enfrentando a erradicação das suas colheitas e o encarceramento, “aqueles que estão no topo do comércio permanecem em grande parte ilesos, uma vez que o seu poder, dinheiro ou violência lhes conferem imunidade contra processos judiciais e influência sobre a formulação de políticas da elite”.
“O ato de tornar ilegais produtos de alta demanda cria uma economia subterrânea de alto risco, com lucro e poder astronômicos para aqueles que a controlam. Estas medidas são suficientes para incorporar a violência e a corrupção, ‘subornar’ autoridades de todos os níveis e desviar recursos e políticas para satisfazer as necessidades do crime organizado”, denunciam os autores.
O comércio de drogas consome recursos públicos significativos através de um esforço policial e militar imenso, “mas ineficaz e contraproducente”, afirma o documento, ressaltando que os esforços para combater o tráfico têm crescido paralelamente ao aumento do comércio ao longo dos últimos cinquenta anos. “Numa estimativa conservadora, a aplicação de políticas antidrogas custa pelo menos 100 bilhões de dólares por ano a nível mundial”.
Apesar dos vastos recursos investidos na guerra às drogas, os seus resultados foram desastrosos, apontam os autores, visto que “as drogas ilegais estão mais disponíveis, mais baratas, mais variadas e mais potentes e perigosas do que nunca”, resultando em “mais pessoas usando drogas, sofrendo danos à saúde relacionados às drogas e morrendo”.
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As reformas das políticas de drogas em curso em todo o mundo abrem uma oportunidade para “reconfigurar um dos maiores comércios ilegais do mundo para fazê-lo funcionar a favor da justiça ambiental e não contra ela”, pondera o relatório, advertindo que, para garantir o sucesso das iniciativas climáticas, “é necessária uma regulamentação eficaz e responsável das drogas”.
“A reforma das políticas de drogas não é apenas relevante para a causa da justiça climática, mas também uma parte essencial da solução. Chegou a hora de o movimento ambientalista incluir a reforma das políticas de drogas na sua agenda para proporcionar justiça climática”, clamam os autores.
O artigo recomenda ao movimento ambiental que aprenda sobre os impactos das atuais políticas de drogas nos direitos humanos, na saúde pública, no desenvolvimento sustentável, nas comunidades indígenas e no meio ambiente.
Em todo o mundo estão ocorrendo transições de mercados de drogas ilegais para mercados regulamentados, observa o relatório, ressaltando que o movimento de legalização já está abrangendo outras substâncias além da maconha.
“A regulamentação legal de outras drogas além da cannabis também é agora uma realidade, com um mercado legal de folha de coca estabelecido na Bolívia, e um projeto de lei propondo um mercado legal de coca e cocaína sendo debatido no Senado colombiano, reformas que permitem o acesso a plantas psicodélicas sendo implementadas nos estados do Colorado e Oregon, e os Países Baixos explorando opções para acesso regulamentado ao MDMA/ecstasy.”
O grupo reconhece que a transição para mercados regulamentados de drogas levanta questões difíceis, mas salienta que “a realidade da procura resiliente de drogas tem de ser a base de qualquer discussão racional”, e que existem apenas duas opções para o problema: “ou regulamos de forma responsável os mercados de drogas ou continuamos com as falhas manifestas da proibição e abdicação do controle a grupos destrutivos do crime organizado”.
“É necessário definir claramente prioridades e quadros de avaliação em termos de saúde pública, redução da criminalidade, justiça social e desenvolvimento sustentável; continuar o progresso em passos incrementais cautelosos; envolver uma ampla gama de especialistas e partes interessadas, incluindo as comunidades afetadas; e aprender lições com os sucessos e fracassos do álcool, tabaco, cannabis legal e regulamentação farmacêutica”, afirma a coalizão.
Outros espaços de discussão internacionais já vêm denunciando o fracasso da guerra às drogas, se podemos chamar assim, uma vez que a intenção dos governos pode ser justamente lucrar com a proibição, como evidenciado no caso do ex-presidente hondurenho.
Na “Conferência Latino-Americana e do Caribe sobre Drogas”, realizada no mês passado, o presidente colombiano Gustavo Petro propôs uma aliança entre os países do bloco para que adotem uma posição conjunta e repensem suas políticas de drogas, diante das consequências nefastas da estratégia de enfrentamento e nenhuma redução do uso ou comércio.
Um relatório do Gabinete do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU divulgado em agosto afirma que tratar as drogas como uma questão criminal causa mais danos do que as próprias substâncias e recomenda aos estados-membros que apliquem uma abordagem de saúde pública e direitos humanos às políticas de drogas e afastem-se do atual foco repressivo e punitivista da proibição.
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Imagem de capa: Exército / Divulgação.

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