Herbalismo, bruxaria e maconha

Encontro de bruxas em São Thomé das Letras. Foto: Girls in Green.

O dia das bruxas vem aí, e nós precisamos comemorar as verdadeiras sacerdotisas que usavam (e ainda usam) a cannabis e outras ervas para curar. Entenda mais sobre sua história com as Girls in Green

A gente sabe que aquela frase “somos as netas das bruxas que não conseguiram queimar” virou meme faz tempo, mas precisamos admitir que isso tem um fundinho de verdade. Afinal, quem cresceu com as avós por perto sabe que elas têm mil e uma receitinhas caseiras à base de erva para curar muitas coisas — desde resfriados até zicas mais pesadas. Banho para mau olhado, bênção e uma mistura de conhecimentos passados de geração em geração, há poucos séculos atrás, já seriam o suficiente para levá-las diretamente para as fogueiras da Inquisição.

O historiador Henrique Carneiro, especialista em drogas da Universidade Federal de Ouro Preto, já deu a letra: “as bruxas nada mais eram do que as curandeiras tradicionais, principalmente as de origem celta, que utilizavam plantas para tratar as pessoas, às vezes plantas com poderes psicoativos”.

Essas mulheres deixaram sementes, que ficaram adormecidas por um tempo e, hoje, cada vez mais, voltam a brotar. Delas, surgem inúmeras minas incríveis que têm trabalhado duro para resgatar essas sabedorias ancestrais, usando ervas (muitas vezes psicoativas) para encontrar respostas a problemas modernos. A maconha é uma delas, mas está longe de ser a única! Entretanto, ao longo da história da humanidade, a figura de diversas deusas e sábias foram ligadas à planta.

Vamos aprender mais sobre isso? Vem com a gente mergulhar nesse tema!

Antes de bruxas, deusas

Antes da dominação patriarcal e católica existir na sociedade, as mulheres que praticavam suas habilidades de cura eram vistas como sacerdotisas e ligadas a muitas deusas, como:

  • A Deusa Ishtar (Oriente Antigo, aproximadamente 2300 a.c.)
  • A Rainha de Sabá (Arábia Meridional ou Norte da África, 950 a.c.)
  • A Deusa Asherah (Israel antigo, cerca de 1800 a.c.)
  • A Princesa Ukok (Sibéria, 1500 a.c.)
  • Magu (China, 300 d.c. ou anterior)

Você pode conhecer um pouco mais da história de cada uma aqui!

Ilustração de uma feiticeira em pé em um leão, com duas corujas ao lado.

Representação da deusa Ishtar.

E o que aconteceu depois?

O que na história é registrado como cura era feito de uma forma ritualística, ligada a práticas espirituais. Nelas, um ou uma xamã participava do consumo da cannabis ou a distribuía a seus povos.

Entretanto, sociedades em guerra e cada vez mais patriarcais contribuíram muito para a queda das mulheres na hierarquia dos saberes, reduzindo seus papéis a reprodutoras (inclusive, para saber mais sobre esse assunto, recomendamos muito o livro Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpos e Acumulação Primitiva, da autora Silvia Federici).

Perto do século 18 a.c., a figura de Ishtar é transformada em uma devassa, e esse é tido como o ponto de virada da humanidade para o domínio do patriarcado. Depois, na bíblia, profeta atrás de profeta diz aos hebreus que deus não iria curtir se eles continuassem a queimar o “incenso” em honra da deusa. Essa é, possivelmente, a primeira menção proibicionista à maconha da história, já que ela é apontada como elemento chave desse incenso que queimavam.

Na Renascença, a maconha chegou ao ocidente e se transformou no principal produto agrícola da Europa. Sua importância não foi só econômica: a planta teve uma grande participação na mudança de mentalidade que ocorreu no século XV. Navegações, o surgimento da imprensa e diversos outros avanços só foram possibilitados por conta das fibras do cânhamo, que foram essenciais inclusive para que Cristóvão Colombo chegasse às Américas. Foi ele e outros espanhóis que trouxeram a plantinha pra cá, segundo estudos.

É aí que a coisa começa a ficar mais feia.

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Ninguém espera a inquisição espanhola

Vamos ser sinceras: sabemos como a igreja católica foi a maior provocadora de caos — principalmente chegando na Idade Média.

Ela foi responsável pelo surgimento da Inquisição — um período em que a igreja ganhou muita força e passou a exercer o papel de polícia, julgando hereges em seu tribunal e condenando bruxas à fogueira, forca ou afogamento, passando por torturas de todas as sortes. Ela começou em 1184, ganhou força no século XV e seguiu até meados de 1800. Não existem registros diretos da cannabis como causa de assassinatos, mas sim de todos os tipos de plantas e cogumelos alteradores do estado de consciência.

“O cristianismo afirmou seu caráter de religião imperial e, sob seus domínios, a única droga permitida é o álcool, associado com o sangue de Cristo” — Henrique Carneiro.

Até muito recentemente, as mulheres nem sequer podiam estudar medicina, e as que seguiam fazendo medicina com plantas eram perseguidas como bruxas. Joana d’Arc é um exemplo: queimada viva em 1431 por usar “ervas de bruxaria”, como a mandrágora. Sempre desconfiada de mulheres que sabiam das coisas, a igreja católica julgou Joana, guerreira que ajudou na derrota ao exército inglês na França, como uma bruxa, enquanto o ingrato rei Carlos VII fez vista grossa. Alguns estudiosos dizem que o paganismo, que abertamente usava cannabis e cogumelos psicotrópicos em seus ritos, ainda era amplamente praticado no campo onde Joana cresceu.

Por isso, entendemos bem que a Idade das Trevas foi realmente uma altura obscura para as ervas medicinais e para as tradições — lideradas predominantemente por mulheres, que as colhiam, preparavam e administravam.

Em seu auge, nos séculos 16 e 17, estima-se que a Inquisição tenha matado até 100 mil pessoas, entre mulheres, homens e crianças. As mulheres eram o principal alvo quando a perseguição era a possíveis adeptos à bruxaria. Os motivos são diversos e contestáveis.

Fosse por estarem conquistando mais liberdades, ou quebrando normas sociais vigentes, as mulheres eram vistas como uma terrível ameaça. O clérigo católico Heinrich Kramer afirmou em 1487, no seu livro, Malleus Maleficarum, que “as mulheres têm tendência natural a se tornarem bruxas”.

Temos alguns poucos casos de mulheres bem sucedidas em suas atividades de cura na antiguidade. No século XII, Hildegard de Bingen, uma compositora, filósofa e cristã mística alemã, cultivou maconha no seu quintal e escreveu dois volumes sobre ervas medicinais. Era uma mulher incrivelmente respeitada, que trocava correspondência com o Papa e todos os grandes líderes daquele tempo — assim, ela conseguiu manter seus privilégios. Desde então, é difícil encontrar registros sobre a contribuição das mulheres para a história da erva até 1800, quando Napoleão invadiu o Egito e as suas tropas descobriram o haxixe.

Inquisitor Conrad de Marburgo condenando hereges à fogueira.

Pouco depois, artistas e intelectuais europeus começaram a experimentar o haxixe, incluindo muitas mulheres. Uma delas foi Harriet Martineau, que é a tataravó da princesa Kate Middleton. Ela ainda era uma reformista social, escritora e foi a primeira mulher socióloga do mundo! Entre outras experiências recolhidas nas suas viagens, descreveu, por exemplo, como as mulheres judias não podiam fumar cannabis durante o Sabbath.

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Nas Américas, a perseguição rolava solta

“Curandeiras e fitoterapeutas no México usam maconha em sua prática desde que ela foi introduzida nas Américas pelos espanhóis, no século 15. Elas o faziam discretamente, porque a cannabis rapidamente chamou a atenção da Inquisição Espanhola por suas propriedades alucinógenas.”

A historiadora Dra. Laura Dierksmeier, do Centro de Pesquisa Colaborativa de Culturas de Recursos da Universidade de Tubinga, na Alemanha, estuda os debates em torno da cannabis no século XVIII — e conta muito sobre o trabalho de José Antonio Alzate y Ramírez, sacerdote-cientista que defendeu o uso medicinal da planta no México. No país, como já mencionamos acima, a planta era usada por muitas curandeiras e xamãs locais, juntamente com cogumelos (conhecidos como a Carne de Deus).

As notícias de uma América próspera e selvagem fez com que se criassem tribunais do Santo Ofício no México, Lima e Cartagena, apoiados pela coroa espanhola. Se no México maias e astecas foram perseguidos por seus costumes, em Lima o alvo foram luteranos e protestantes. Em Cartagena, a ameaça era a cultura afro trazida pelos escravos. Na América, judeus eram visados por suas riquezas.

Na época, o sacerdote Alzate fez campanha pelos efeitos curativos da planta, se posicionando contra a posição da coroa espanhola e da Inquisição. Em um artigo de jornal de 1772, ele defendeu a cannabis, que ele conhecia sob o nome “pipiltzintzintlis”, atribuindo a ela benefícios valiosos para o tratamento de tosse, icterícia, zumbido, tumores, depressão e muito mais. Ele também considerou a planta de cânhamo uma excelente matéria-prima para a produção de cordas para veleiros.

Segundo Alzate e os cientistas que ele cita, os benefícios da planta de cânhamo como material de construção ou planta medicinal superam os possíveis efeitos colaterais. Ou, como escreveu: “Acho que demonstrei os benefícios do uso de pipiltzintzintlis e, nas palavras dos teólogos, ele é ruim por que é proibido, não é proibido por que é ruim”.

A Inquisição Espanhola, por outro lado, via o alucinógeno como um meio de se conectar com o diabo e, portanto, o havia banido — assim como muitas outras plantas psicoativas ou comportamentos que, segundo dizia, contradizem os princípios cristãos.

Mulheres eram torturadas e mortas por qualquer motivo — sendo os alvos principais as parteiras e curandeiras. Os médicos na época não eram acessíveis para os pobres, que tinham apenas essas mulheres — que carregavam um alto conhecimento em plantas medicinais para curar doenças e enfermidades diversas. Mas isso bastava para serem acusadas de bruxaria e serem mortas pela Inquisição: simplesmente por que as ervas que cultivavam e administravam curavam os doentes.

No Brasil, a Inquisição também fez vítimas, principalmente indígenas. Seus rituais e a não conversão para o cristianismo bastavam para serem julgados como hereges e demoníacos.

Guerra às drogas: uma nova caça às bruxas

Como não temos um segundo de paz nessa história toda, a Inquisição pode até ter ido embora em 1834, mas o punitivismo apenas mudou de forma. “Preocupados” com fatores raciais, econômicos, políticos e morais, os poderosos começaram a dar forma ao proibicionismo como conhecemos hoje. As bruxas mudaram de forma: árabes, chineses, mexicanos e negros, usuários frequentes de maconha no começo do século XX, passaram a ser perseguidos pelo Estado.

A historiadora brasileira Luisa Saad tem diversos estudos sobre o proibicionismo como ferramenta para controle de determinada população. Inclusive, em seu livro, “Fumo de Negro”: a criminalização da maconha no pós-abolição, ela discorre como esse fenômeno ocorreu no Brasil, que proibiu a maconha, assim como outras práticas afro-descendentes como o candomblé e a capoeira, em 1830. Nesse cenário, apesar da escravidão ter se tornado ilegal, a aristocracia queria estigmatizar e excluir a população negra e sua cultura.

Em 1961, ocorreu a Convenção Única sobre Entorpecentes em Nova York, onde foi estabelecido um tratado pelas Nações Unidas classificando a maconha como uma substância perigosa e sem valor terapêutico, que deveria ser proibida internacionalmente.

Muitos países, onde existiam remédios à base de maconha, tiveram que retirar seus produtos das farmácias. Os usuários, até então medicinais, se tornaram criminosos, e o proibicionismo se tornou de fato uma guerra. O termo “Guerra às Drogas” vem à tona quando, em 1971, o presidente americano Nixon determina que elas são o inimigo número um da sociedade.

Nos Estados Unidos, a população carcerária aumentou 140% entre 1971 e 1981. O encarceramento em massa é uma das principais consequências do proibicionismo e está diretamente ligado com o mecanismo de controle social.

E não foi só por lá: no Brasil, o segundo motivo que mais prende é relacionado a drogas. Essa cifra corresponde a 26% dos detidos (45% das mulheres e 24% dos homens). Ou seja: antes queimadas, hoje, as mulheres sofrem com prisões arbitrárias e desnecessárias em nome de uma “guerra” tão falida, acabada e sem cabimento quanto a Inquisição.

Com todas essas informações, podemos tirar muitas conclusões. A primeira que nos chama atenção é como o patriarcado, com a ajuda da igreja católica, conseguiu enfraquecer as mulheres e colocá-las como párias da sociedade — lugar que, infelizmente, lutamos até hoje para deixar de ocupar. Mas a segunda é a que mais surpreende: nós, mulheres, fomos usadas e punidas desproporcionalmente nas primeiras menções proibicionistas da história. Coibir o uso de substâncias alteradoras de consciência tirou de nós também um pouco de nossa magia, do que é mais sagrado em nós, que é o poder da vida e da cura.

Atualmente, vemos o quanto a Guerra às Drogas também atinge desproporcionalmente as mulheres — como já mostramos aqui. Mas, como sempre, existem também outros bodes expiatórios. Não são mais condenados como hereges, e sim como “drogadas(os)” ou “marginais”.

Nesse Dia das Bruxas, que tal honrarmos toda essa história?

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Foto de capa foi registrada em um encontro de bruxas em São Thomé das Letras. Imagem: Girls in Green.

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Sobre Girls in Green

O Girls in Green é um projeto feito por mulheres canábicas, focado na produção e disseminação de conteúdo digital acessível, livre de julgamentos e tabus, abordando temas como maconha, uso de drogas, cultivo, haxixe e política - sempre sob a ótica da Redução de Danos. O principal objetivo do canal é combater o estigma e a desinformação resultantes da Guerra às Drogas.
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