Há diversos direitos que garantem a segurança do cidadão em uma abordagem. Por outro lado, eles parecem existir apenas para uma pequena camada da sociedade. Afinal, como nos proteger na hora do enquadro? A Bem Bolado Brasil convidou o advogado Erik Torquato para esclarecer a questão, confira
Direito de permanecer em silêncio, de não fornecer a senha do celular, de chamar um advogado… até mesmo o direito de não ser enquadrado sem motivos concretos foi garantido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). O RHC 158.580-BA foi aprovado contra a prisão de um homem por tráfico de drogas na Bahia, em 2022, que alegou busca pessoal realizada sem motivo pelos policiais. Mas, na prática, sabemos que não é assim que funciona.
Por isso, ampliar esse debate é essencial, pois a violência praticada pelo Estado está intrinsecamente ligada à história do racismo. As forças de segurança vêm sendo responsáveis pela seletividade penal, que aprisiona jovens negros em sua imensa maioria — cerca de 43% da população carcerária total, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023.
Não é novidade que, fatalmente, as abordagens variam de acordo com a cor da pele, região e classe econômica — e, aparentemente, isso não é motivo de constrangimento para as forças de segurança. Em 2017, um vídeo em que o comandante da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) afirma que “a abordagem no Jardins (bairro nobre de São Paulo) tem que ser diferente da periferia” viralizou na internet.
Neste contexto, saber como agir de maneira consciente e estratégica durante um enquadro é fundamental. Antes, vamos entender o que, teoricamente, é direito do enquadrado:
Expectativa
Perguntas que o usuário não é obrigado a responder quando encontrado com maconha:
- Onde adquiriu a droga;
- Para onde iria levá-la e o que iria fazer com ela;
- Se a droga era sua ou iria entregar pra alguém.
O acusado também não é obrigado a levar o policial para sua residência para que ele verifique se há mais drogas no local, além da polícia não ter o direito de invadir a residência alheia por encontrar drogas com o usuário na rua.
Diferentemente do que acontece na prática, a única obrigação do usuário é se identificar ao policial. Infelizmente, situações em que o enquadrado demonstra ter conhecimento sobre seus direitos e há recusa em agir conforme as imposições do oficial colaboram para os dados abaixo.
Realidade
Dados da pesquisa “Por que eu?”, de 2021, realizada pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) em parceria com o data_labe, mostram que oito em cada dez pessoas negras já foram abordadas pela polícia. Em 46% dos casos, a cor da pele foi utilizada pelos agentes de segurança como justificativa para o enquadro. Entre os que declararam terem sido abordados mais de dez vezes, o percentual entre os negros foi de 19,1% — mais que o dobro em comparação aos entrevistados brancos (8,5%).
Outra pesquisa, do Instituto Locomotiva realizada para a Central Única das Favelas (CUFA), em 2020, afirma que 50 milhões de brasileiros declaram ter sofrido algum tipo de constrangimento durante uma abordagem policial. Além disso, o levantamento mostra que 19% dos homens negros de baixa renda já sofreram agressões físicas durante o enquadro, contra 12% dos homens brancos, também de baixa renda.
Afinal, como se proteger na hora do enquadro?
“Uma maneira estratégica de se comportar na hora do enquadro é agir com calma e educação”, explica o advogado Erik Torquato. Mesmo que você esteja coberto de razão, esse não é o momento de confrontar o policial.
Por mais difícil que seja, é necessário utilizar de uma estratégia de “submissão” para poder conseguir sair dessa situação de opressão, estando ou não com maconha. O que pode ser feito é adotar estratégias práticas para se proteger:
- Memorizar o nome do policial e/ou número da viatura;
- Observar o entorno da situação para identificar possíveis testemunhas;
- Observar se existem pessoas filmando ou até mesmo uma câmera de um estabelecimento comercial ou uma residência.
Neste último caso, se você encontrar uma câmera, a ideia é tentar se aproximar desse ponto ou se posicionar estrategicamente, de maneira que o ângulo favoreça a gravação da abordagem. E, é claro, fazer isso da forma mais discreta possível — o que, em um momento de nervosismo, pode ser difícil. Mesmo assim, é importante ter essas estratégias em mente e estar preparado para uma eventual abordagem intensa e violenta.
Fui vítima, o que fazer?
Caso o usuário tenha sido vítima, é preciso analisar se pretende buscar a responsabilização daquele policial. “Na maioria das vezes, trata-se de uma pessoa que se encontra em uma situação muito vulnerável na sociedade. Buscar a responsabilização dos policiais pode aumentar o risco, um tapa na cara pode virar um homicídio ou uma prisão forjada”, explica o advogado.
Se houver a decisão de buscar a justiça, o primeiro passo é registrar a ocorrência. Depois, unir as possíveis provas (testemunhas, imagens de câmeras, exame de corpo e delito no IML — no caso de agressão física — junto à guia do registro de ocorrência) e levar à delegacia. Também é possível acionar a corregedoria/ouvidoria da instituição e registrar uma representação narrando os fatos, indicando testemunhas e possíveis provas. É imprescindível contar com a ajuda de um advogado, da defensoria pública ou, ainda, da Comissão de Direitos Humanos da OAB da Assembleia Legislativa local.
Diante do contexto histórico racista que permeia a sociedade brasileira de forma estrutural, a realidade das práticas policiais escancara a necessidade urgente de reflexão e mudanças no sistema. Enquanto isso não acontece, acaba sendo necessário agir com certa “submissão” para sair ileso em situações de opressão, como indica Erik.