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Do Ibirapuera à Paulista: a evolução da Marcha da Maconha de São Paulo

Do Ibirapuera à Paulista: a evolução da Marcha da Maconha de São Paulo

A aLeda conversou com a organização da Marcha da Maconha de São Paulo e com a articulação nacional do movimento para traçar um panorama histórico, confira

Manifestações populares são uma forma de expressar uma ideia, um ponto de vista. O povo vai às ruas motivado por diferentes causas, normalmente ligadas à ampliação de direitos sociais e à cidadania. Para além dos protestos presentes nos livros de história e que fazem parte da escolarização de crianças de forma hegemônica ao redor do mundo, existe uma série de outras lutas sociais avançando na sociedade. 

O movimento antiproibicionista teve início no Brasil entre os anos 1980 e 1990, ligado ao movimento estudantil, em um momento pós-ditadura e de revolta operária. Nesse mesmo período, emergiram no Brasil outras pautas, inspiradas pela luta social que já acontecia internacionalmente por direitos LGBT, pelo movimento negro e pelo movimento feminista. Em 1994 aconteceu a primeira Marcha da Maconha (Global Marijuana March), na cidade de Nova York, nos Estados Unidos, fato que motivou a primeira manifestação pela legalização da maconha no Brasil, realizada no Rio de Janeiro, em 2002, e a primeira Marcha da Maconha do Brasil, também no Rio de Janeiro, em 2007, bem como a primeira Marcha da Maconha de São Paulo, em 2008.

Assim como a maioria dos movimentos sociais, a Marcha da Maconha de São Paulo também começou a partir de um grupo de jovens dispostos a lutar pela mudança — nesse caso, pela legalização da planta e pelo fim da guerra às drogas e suas consequências. O ativista Julio Delmanto, jornalista, historiador e pesquisador da política de drogas, começou a frequentar a Marcha da Maconha de São Paulo desde a sua primeira edição, e tornou-se parte da organização do coletivo desde então. 

Julio atuava no movimento estudantil e tentava trazer a pauta antiproibicionista dentro dos grupos de esquerda da época e, simultaneamente à participação na Marcha da Maconha, ele e mais alguns amigos fundaram o coletivo DAR – Desentorpecendo a Razão, que trazia a pauta da política e uso de drogas de uma forma mais ampla. O ativista conta que as primeiras edições da Marcha de São Paulo (2008 – 2010), que aconteceram no Parque Ibirapuera, foram divulgadas pela internet — na época, em grupos de cultivadores no Facebook, como o Growroom — em um momento em que as pessoas ainda se preocupavam em associar o nome e imagem pessoal ao uso da erva. Cerca de 50 pessoas participaram da primeira edição do evento, em 2008, e em 2010 já haviam aproximadamente 700 manifestantes ocupando as passagens do Ibirapuera.

O que começou a acontecer é que na véspera do evento eles proibiam, para não ter tempo de recorrer na justiça. Era sempre sexta à noite, e isso dava uma afugentada boa nas pessoas, por outro lado atraia um pouco mais de mídia. Ficamos de 2008 a 2010 no Ibirapuera, sempre proibidos e passando pela mesma situação. Às vezes, rolava reunião com os caras, tentávamos ações mais jurídicas, habeas corpus, várias fitas, mas nada adiantou. Então, pensamos: não dá pra ficar no Ibirapuera, é ridículo, e além de tudo sendo proibido igual, não servia de nada. E aí, fomos para a Paulista em 2011″, explica.

Do Ibirapuera à Paulista

Como já era de se esperar, a tropa da Polícia Militar de São Paulo marcou presença desde as primeiras manifestações pela legalização da maconha. A dificuldade de realização do evento, devido à proibição por “apologia ao uso de drogas”, levou um integrante do coletivo a entrar na justiça com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), alegando que o impedimento era inconstitucional e feria o direito à liberdade de expressão. 

A repressão policial truculenta na Marcha de Maconha de São Paulo em 2011, a primeira realizada na Avenida Paulista, ganhou destaque nos veículos tradicionais de imprensa e ajudou na tramitação da ADPF 187, que poucos dias depois foi liberada por decisão unânime com 8 votos favoráveis no STF (Supremo Tribunal Federal). Confira neste vídeo, da Folha de São Paulo, uma breve cobertura da ação da tropa da PM de São Paulo na ocasião:

Esse dia foi um marco. Umas 2 mil pessoas reprimidas por suposta apologia ao crime, gente machucada e presa. Eu fui preso, a Marcha foi lá na delegacia me buscar. Outras cidades e estados estavam sendo reprimidos, e nessa ocasião a PM de SP perdeu um pouco a mão e saiu muito na mídia, muita gente ficou do nosso lado. Isso deu uma apressada no julgamento do STF que já estava lá há um bom tempo, mas não tinha acontecido nada. A reversão dessa proibição foi na rua mesmo, graças às marchas e ao poder popular”, conta Julio.


Leia também: STF libera Marcha da Maconha

Como funciona a organização da Marcha da Maconha de São Paulo?

A marcha é totalmente dependente da disposição dos voluntários, mantendo-se de forma espontânea e resiliente. Mesmo com desafios, como, por exemplo, ideias divergentes entre os participantes, a participação contínua e a renovação constante dos membros garantem a sustentabilidade do movimento. 

As reuniões são periódicas, abertas e divulgadas através do Instagram da Marcha da Maconha para atrair novos participantes, que são informados e envolvidos no debate de ideias. Elas ocorrem presencialmente em diversas áreas da cidade, e o número de participantes varia ao longo dos encontros. Digamos que em cada reunião nós temos uma média de, sei lá, 30 pessoas fixas. Mas, não seria um absurdo dizer que a organização Marcha de São Paulo possui centenas de pessoas, em níveis diferentes de comprometimento, explica Julio.

Nessas ocasiões, a organização foca em chegar a decisões estratégicas, como o tema da marcha, como será gasto o dinheiro arrecadado e outras atividades mais gerais, além da divisão dos participantes em grupos de trabalho menores como áreas específicas, como comunicação, segurança, acessibilidade, eventos e finanças.

O antídoto para contermos as brigas para que isso não nos atrapalhe é a forma das decisões, que são tomadas em consenso. Isso às vezes demora, atrasa muito, mas faz com que não exista essa lógica que muitas vezes gera conflitos, de achar que a sua opinião tá certa e a dos outros errada. Não tem votação na Marcha: se tiver 20 pessoas dizendo algo e 2 pessoas contra, essa questão não vai passar. Essas 20 vão ter que convencer as outras 2, ou ao contrário. Ou, no final, chegamos em um meio termo, ou vamos ficar na reunião pra sempre”, explica o ativista.

A principal fonte de financiamento é a venda de camisetas durante as marchas, complementada por doações anônimas de indivíduos e grupos. O dinheiro arrecadado é utilizado para apoiar outras marchas, divulgar o movimento e cobrir os custos dos eventos.

O que é a Articulação Nacional de Marchas da Maconha?

Quando coletivos de uma cidade se unem com o objetivo de dar início à organização de uma Marcha da Maconha local, é a Articulação Nacional de Marchas da Maconha que oferece apoio e instruções para facilitar o trabalho do novo grupo. A articulação surgiu em 2019, a partir da necessidade de uma rede que ficasse responsável pela interlocução entre os coletivos de marchas em diferentes cidades, para a construção da Marcha da Maconha como um movimento social organizado a nível nacional. 

A Articulação Nacional de Marchas da Maconha evita a representação obrigatória de todas as marchas. “As marchas são muito bem-vindas, mas ninguém vai impor uma adesão à articulação”, explica Paulo Tavares, advogado social e membro da Articulação e da organização da Marcha da Maconha de Campinas. Esta rede funciona de forma horizontal, sem um comando central, com decisões tomadas em reuniões dominicais deliberativas, assim como as Marchas da Maconha num geral. 

Em 2020, a articulação começou a definir iniciativas e, após longos debates, elaborou uma carta de princípios que enfatiza a horizontalidade, ausência de hierarquia, e autonomia dos coletivos locais. Os princípios também incluem posicionamentos contra machismo, racismo e LGBTfobia, refletindo um compromisso com a inclusão e igualdade.

Outro trabalho relevante da Articulação e de extrema importância para a Marcha da Maconha é o apoio para o surgimento de marchas em cidades menores e mais conservadoras, quando há a tentativa de impedimento e/ou proibição da manifestação. 

A primeira marcha de Volta Redonda tinha ameaça do prefeito, de vereador, a gente colou lá e a marcha aconteceu. Tem sido um processo muito interessante de apoiar as marchas existentes e apoiar a criação de outras”, explica Paulo Tavares.

Marcha da Maconha de São Paulo 2024: “Bolando um Futuro Sem Guerra”

O evento reuniu centenas de milhares de manifestantes na Avenida Paulista este ano. Pela primeira vez, a Marcha da Maconha de São Paulo foi realizada em um domingo, dia 16/6. A ideia era aproveitar a conquista da Tarifa Zero e o programa “Ruas Abertas” para facilitar o deslocamento e trânsito de pessoas no local, além de ganhar ainda mais visibilidade para a marcha.

No entanto, a data escolhida coincidiu com o segundo domingo em que a Prefeitura decidiu não abrir a Paulista, com a justificativa de um evento que aconteceria aos arredores da avenida. Ativistas e munícipes alegam que a gestão atual não valoriza o lazer da população e é contra a apropriação do espaço público pelo povo, e por isso está restringindo o programa. Assim como toda a extensão da Paulista, a região do MASP – onde acontece a concentração e partida da Marcha da Maconha – também foi impactada pela medida. Mesmo assim, os manifestantes compareceram em massa e marcharam do MASP à Praça da República, reivindicando a legalização da planta para todos os usos.

O tema central da marcha deste ano dialogou com diversas questões. Apesar do fim do governo Bolsonaro, ainda existe um descompasso entre o avanço social da pauta e a realidade política. À medida que vemos a maconha cada vez mais presente na sociedade — seja o uso medicinal no SUS, as feiras canábicas, o crescimento de empresas do setor —, ainda lutamos com ideias conservadoras e retrocessos políticos, como por exemplo a PEC 45, que criminaliza o porte de qualquer quantidade de drogas ilícitas para uso pessoal e que foi aprovada na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara na semana passada.

Por mais que tenham mudado as pessoas e o clima político, novamente estão negociando as nossas pautas e nossas vidas. Nossas vidas estão virando moeda política, a vida dos mais pobres, negros e das periferias”, Julio Delmanto.

Não é novidade que a guerra às drogas tem tido consequências devastadoras, especialmente para a população negra e periférica. Dados mostram que essas comunidades são as mais atingidas pela política proibicionista, que resulta em uma repressão desproporcional e violenta. A abordagem militarizada e punitiva adotada pelo Estado leva a frequentes operações policiais em favelas e bairros marginalizados, resultando em um número alarmante de jovens negros sendo assassinados ou encarcerados.

Para confrontar a atual política de drogas proibicionista e termos avanços em um país como o Brasil, Paulo acredita que é necessário um movimento cada vez maior, mais forte e muito bem organizado de Marchas da Maconha ao redor do Brasil:

A Marcha de São Paulo ser uma marcha gigante é algo maravilhoso, a sensação de estar na rua com milhares de pessoas defendendo o fim dessa estupidez é muito animador. Mas o nosso grande avanço político vai ser com a capilaridade da marcha cada vez em mais cidades, para além das capitais e das grandes cidades”, Paulo Tavares.

Impacto social e cultural e o futuro do antiproibicionismo no Brasil

Mesmo com o STF tendo aprovado a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal na última quarta-feira (25), a medida não resolve as profundas consequências da guerra às drogas no Brasil. A justiça social e racial só acontecerá diante da legalização da planta, o que ainda é uma realidade muito distante tendo em vista o cenário conservador no Congresso. Ainda assim, existem saldos positivos para a luta antiproibicionista nas últimas décadas.

Julio conta que, nas primeiras marchas, muitas pessoas preocupavam-se em utilizar máscaras para esconder o rosto por medo de represália no trabalho ou pela família, por exemplo. Hoje, essa é uma questão muito mais do que superada e as pessoas estão tendo mais coragem de dar a cara à tapa e admitir: “sou maconheiro!”, um passo fundamental para a desmistificação e normalização do uso da planta. “Aliado que se esconde pra mim não é aliado. Quer tá na luta, tem que botar a cara e falar”, comenta Paulo.

Além disso, ainda que as leis não avancem, a sociedade continua a lutar e persistir em seus projetos, associações ou empreendimentos, pois, como mostram dados da Kaya Mind, apenas o mercado da maconha medicinal movimenta cerca de 700 milhões de reais no Brasil.

O otimismo está quando a gente olha para as pessoas, o que tá acontecendo de baixo, e isso não parou de aumentar”, Julio Delmanto.

(Texto por Bianca Rodrigues)

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