Miniguia de cervejas artesanais dank, terpenadas e inspiradas na maconha

Lúpulos selecionados, cultivados em terroir de cannabis, ingredientes e terpenos que recriam perfis aromáticos de strains e alusão ao tema aproximam a cerveja artesanal da maconha
Bonanza Mango Hazy, Green Wave, West Coast Seattle Boys, North Sea, Three Little Birds, Golden Hash. Strains de maconha? Apesar da semelhança, não. São rótulos de cervejas artesanais brasileiras. Mera coincidência? Também não.
As similaridades entre o mundo cervejeiro e o canábico partem da premissa de que o lúpulo e a cannabis são da mesma família botânica e, por aromas, sabores e efeitos, encontram convergência na produção artesanal de cervejas com inspiração canábica, uma tendência que atrai entusiastas dos dois lados.
Paixões nacionais
A bebida alcóolica mais querida do país, à frente até da brasileiríssima cachaça, e a substância ilícita mais consumida no mundo estão em patamares bem diferentes no que diz respeito à regulamentação do mercado consumidor, em um conflito legal, ético e moral sobre drogas que exala hipocrisia e aprofunda abismos. Ainda assim, a popularidade dos produtos, o caráter social do consumo e as sensações que geram, em maior ou menor grau, permitem associações, ainda que subliminares, entre a breja e a brenfa.
“Desde o início, buscamos lupulagens que remetessem às strains de cannabis mais famosas”, diz Mario Kleina, cofundador e um dos quatro sócios da Fumaçônica, cervejaria artesanal, cigana e independente de Curitiba, uma das precursoras da abordagem canábica na cena cervejeira. “A gente tem a pegada da escola americana, que remete muito a toques cítricos e florais, então costumamos representar strains nessa linhagem através de composições de lúpulo”.
Com quatro rótulos fixos, de nomes sugestivos, como Flower APA e Kunk IPA, e collabs com outras cervejarias, a marca de lifesyle nascida em encontros regados a cerveja e maconha dialoga com usuários de ambas as substâncias com perspicácia e sutileza. “É uma marca que induz as pessoas a ficarem curiosas, mas nunca de uma maneira tão escancarada, porque a gente julga que o maconheiro é muito mais esperto que todo mundo, afinal, vive se escondendo”, diz Kleina.
Na mesma pegada alusiva à cultura canábica, a Weed or Hemp apresenta três cervejas que se propõem a harmonizar com as cepas que nomeiam seus rótulos: Northern Lights, White Widow e Super Lemon Haze. “Eu como empreendedor vislumbrei o mercado de cannabis e me perguntei como lançar uma marca no país onde tudo é proibido. A ideia foi trabalhar uma droga lícita para isso”, explica Augusto Gaia, fundador da empresa. “Quis trazer a temática, com receitas que trabalham associações, buscando aroma, sabor, efeito”.
Brisa de maconheiro? Jogada de marketing? Para o sommelier de cerveja, mestre em estilos e especialista em harmonização pelo Instituto da Cerveja, Guto Procópio, é possível chegar perto do perfil aromático de variedades de maconha com a escolha certa de ingredientes e técnicas de produção da cerveja.
Dank!
“Dank é uma gíria que surgiu do pessoal que usa cannabis”, conta Bruno Moreno, co-sócio-fundador responsável pela produção da cervejaria paulistana Dogma que, inspirada na tendência, lançou em 2017 um rótulo chamado Dankest. “A palavra significa molhado, úmido. Daí o pessoal quando pegava uma cannabis de qualidade muito boa, chamavam de dank, e isso veio para a cerveja”.
“O vale do Yakima, que fica no estado de Washington, é a região mais importante de produção de lúpulo nos Estados Unidos”, explica o sommelier e professor Guto Procópio. “Uma universidade do Oregon, próxima à região, começou a desenvolver variações que parecessem cada vez mais com as canábicas, com a intenção de selecionar, com cruzamento de lúpulos e seleção artificial, os terpenos mais parecidos”.
O resultado é a criação de variedades de lúpulo, como o Strata, que trazem o aroma herbal característico da maconha e imprimem tal perfume em receitas desenvolvidas para potencializar este traço nas cervejas artesanais. “Esse lúpulo representa muito os perfis de cannabis mais cítricas, frutas amarelas, com dank bem intenso”, explica Mário Kleina, da Fumaçônica, que desenvolveu em parceria com a cervejaria Joy uma receita que, além da lupulagem com Strata, traz um ingrediente que faz uma referência especial aos haxixeiros: o HopHash.
“O processo de produção desse insumo é bem interessante e se assemelha muito ao haxixe mesmo”, conta Kleina. “O lúpulo é extraído a frio, em grandes panelas, e fica circulando para extrair os óleos essenciais. O que sobra nas raspas dessa panela é um negócio hiper concentrado. O néctar do lúpulo. Os óleos essenciais estão todos presentes, três a quatro vezes mais potentes que o lúpulo”.
O ingrediente que faz analogia ao haxixe é mais um paralelo entre os mundos cervejeiro e canábico ilustrado pela gíria dank. Mas, assim como a cannabis e a cerveja artesanal no Brasil, ainda inacessível ao consumidor médio. “Quando a gente fala no Brasil que a cerveja tem um perfil dank, canábico, isso quer dizer muito pouco, porque a gente ainda conhece uma péssima qualidade de maconha no Brasil, exceto os que têm acesso à flor, que notam aromas parecidos”, lembra Guto Procópio.
Cheiro de flor
“O terpeno é um aroma alimentício, o coração do óleo essencial”, conta João Lordello, um dos sócios-fundadores da Cool Terps, que produz no Brasil blends aromáticos que imitam variedades de maconha. “É uma matéria-prima para a indústria de alimento e bebida, e o que a gente faz? Recria o aroma da cannabis, que chamamos de natural sintetizado, porque é uma composição de aromas naturais de outras plantas”.
Fornecedora de aromas canábicos para mais de 17 cervejarias artesanais no Brasil, a empresa olhou para fora (da caixa) e enxergou uma oportunidade observando a regulamentação das bebidas infundidas com cannabis no exterior.
“O terpeno isolado da flor [de cannabis] é extremamente caro, inviável para a indústria, mesmo como matéria-prima”, explica Lordello. “Além do que, esse óleo pode ter algum resquício de canabinoides, e se você quiser usá-lo em uma cerveja que tem álcool, não é permitido”.
A imposição da regulamentação estrangeira permite que o Brasil acompanhe a tendência de cervejas terpenadas, unindo de vez os dois mercados. “A minha missão é atingir o máximo de nichos possíveis com a Squadafum”, conta Jarrão, um dos sócios-fundadores da marca de lifestyle canábico que recentemente lançou a cerveja Green Wave, em collab com a Dogma. “Com a cerveja, eu consegui entrar em boutiques de carnes com a tabacaria junto. São ganchos para atingir outros nichos de mercado”.
Com um blend aromático importado que remete à strain Sour Tsunami e uma seleção de lúpulos na pegada dank, a “Terpene Hazy IPA” foi sucesso entre o público da marca, que esgotou o primeiro lote da cerveja em 48 horas. “A gente sabe que terpeno não tem THC, não vai alterar o estado de consciência, então fomos atrás de empresas que faziam essa extração da fruta, do pinho, da fonte correta”, conta Jarrão.
“A partir da strain, comecei a pensar nos lúpulos que poderiam ter uma certa relação com aqueles aromas que estavam aparecendo no terpeno, que lembram frutas doces, vermelhas”, explica Bruno Moreno, da Dogma, que acompanhou o processo de produção da cerveja. “Tem um lúpulo americano chamado Idaho Gem que tem aromas parecidos, então acabei focando nele e no Strata, famoso por trazer os aromas dank, uma variedade que começou a chegar no Brasil no ano passado”.
“Os terpenos ampliam as camadas de aroma e de sabor”, explica Guto Procópio. “No caso da cerveja, acrescentar ingredientes não tira dela a qualidade: você pode adicionar uma fruta, uma casca, um terpeno, uma erva, e mesmo assim ela pode ser mais interessante do que a anterior”.
Na experimentação e combinação de ingredientes milenares e contemporâneos, a cervejaria artesanal se permite flertar com um nicho que tem potencial gigantesco e muito a agregar no setor de bebidas, mas ainda sem se comprometer — a mensagem está nas entrelinhas, às vistas de quem sabe interpretar os sinais da cultura canábica, mas oculta da visão da maioria dos consumidores.
“A gente fala que os terpenos são o retrato de aroma de cannabis, mas no rótulo é aroma alimentício”, diz Lordello, que, além da Cool Terps, tem outros empreendimentos nos ramos canábico e cervejeiro. “O que faz o aroma ter preconceito? Saber que ele é de flor. A gente quer que a indústria também conheça esses aromas”.
Primos distantes
Se toda essa história parte da analogia entre ingredientes primos, é na metáfora de família que os laços entre o primo maconheiro e o primo cervejeiro se afrouxam e as diferenças se afloram.
“Eu diria que a gente tem os três públicos: o cervejeiro, o maconheiro e tem os dois”, diz Mario Kleina. “Foi muito difícil convencer o público cervejeiro, raiz mesmo, que sempre vinha enxergando a gente com certo preconceito, com pé atrás, ‘por que esses maconheiros querem fazer cerveja?’”.
Guto Procópio explica: “o mercado cervejeiro é ainda elitizado, com pouco espaço para diversidade. São raras as cervejarias lideradas por mulheres, por negros. Geralmente, é homem branco. Então, no final das contas, reproduz o padrão e historicamente faz repetir o discurso conservador”.
Mas, ainda que a tendência de cervejas dank ou terpenadas não chegue a figurar nos guias que elegem os estilos oficiais da cervejaria artesanal, ou que as alusões à cultura canábica sejam indecifráveis na percepção do público geral a ponto de gerar transformação, o fato é que a cannabis está sendo normalizada em nichos como os da cervejaria artesanal, e, de golinho em golinho, conquistando o gosto dos consumidores brasileiros.
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