Cânhamo na moda: como o têxtil pode unir funcionalidade e propósito?

Fotografia, em close, de um emaranhado de fibras de cânhamo em tons de bege, que preenche todo quadro. Imagem: Michael Gaida | Pixabay.

Da roupa de todo dia à calcinha menstrual, é possível encontrar peças que usam o cânhamo de forma inteligente no Brasil

O cânhamo têxtil não é novidade no país — do icônico tênis Hemp, da Adidas, que foi sensação nos anos 90, às coleções da Osklen e da Reserva, vira e mexe a indústria da moda apresenta o tecido em contextos diferentes. O recente lançamento da Vans, por exemplo, usa as fibras na fabricação da malha de um tênis todo sustentável, inserindo o cânhamo têxtil como opção para um mercado consumidor cada vez mais exigente e atento à sua pegada ecológica.

“O cânhamo precisa de uma quantidade muito menor de água do que o algodão para produzir a mesma peça, e a transformação também tem processos químicos mais simples do que outras fibras”, explica Rafael Arcuri, diretor executivo da Associação Nacional do Cânhamo (ANC), entidade sem fins lucrativos que luta por uma regulação mais abrangente do cânhamo no Brasil.

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Mas, afinal, a forma têxtil do cânhamo seria uma alternativa viável para uma indústria altamente poluente? Por que não é amplamente usada? As respostas para essas perguntas passam por questões regulatórias, mas também de mercado.

“Hoje, o têxtil, de forma clara e objetiva, pode entrar legalmente no país”, diz Arcuri. “As formas mais cruas de entrada são os fios, mas já tivemos notícia da entrada de uma biomassa mais crua ainda”.

 

 

 

A possibilidade de importação da matéria-prima é o que permite encontrar peças de cânhamo nas vitrines brasileiras. Porém, fatores como o câmbio, a logística e a disponibilidade são barreiras que podem inviabilizar sua ampla utilização pela indústria da moda. Segundo explica Arcuri, além de ser mais caro que o algodão, o cânhamo têxtil não é produzido em larga escala em países das Américas que legalizaram seu cultivo, como Estados Unidos, Canadá e Paraguai, porque a competição com China e Índia, cuja tradição nesse nicho é forte, torna a operação economicamente inviável.

Além disso, a regulamentação que permite o cultivo de cânhamo nesses países é condicionada à produção de variedades com certo limite de THC que, se extrapolado, compromete a produção, o que consequentemente aumenta o custo da matéria-prima. “O cânhamo é agro em todas as letras, porque precisamos de grandes áreas cultiváveis, não digo nem monocultura, mas precisamos de volume para ser economicamente viável”, diz Arcuri. “Se tivermos um controle muito rígido de THC e um perdimento muito grande por conta disso, entra no custo”.

E se o cultivo de cânhamo fosse permitido no Brasil?

A lógica do preço versus legalização no mercado interno não é direta”, explica Arcuri. “Não dá para afirmar que necessariamente se a gente tiver um cultivo legalizado no Brasil, será rentável para o têxtil”.

Isso por que, segundo explica o diretor executivo da ANC, embora o país tenha forte tradição no agro e na indústria têxtil, os principais fatores para a viabilidade econômica da produção do cânhamo para o setor são a mão de obra, os meios de capital, específicos para essa cultura, e a forma como a regulação e fiscalização seriam feitas — uma equação complexa, para a qual ainda não há solução.

Em uma indústria que preza pelo lucro, que estimula o consumismo e o descarte desenfreados de seus produtos e não necessariamente liga para o impacto ambiental que gera, o uso do cânhamo têxtil parece incapaz de gerar grandes transformações. Por outro lado, marcas alinhadas ao conceito de slow fashion e atentas ao uso consciente de recursos, humanos e naturais, se beneficiam dos produtos têxteis derivados do cânhamo de forma inteligente, unindo funcionalidade e propósito.

“O cânhamo não é panaceia”, afirma Arcuri. “Temos que tratá-lo como uma ferramenta mais eficiente e/ou mais eficaz em determinados usos e, ainda sendo cético, são muitos usos”.

A durabilidade das fibras, por exemplo, é um diferencial para quem busca peças atemporais, como as do ateliê Flavia Aranha, que tem como objetivo criar moda com transparência em todas as etapas da cadeia de produção e com preocupação socioambiental.

O baixo impacto ambiental da produção têxtil de cânhamo incentivou a multinacional brasileira Vicunha, referência em jeanswear, a lançar modelos de denim com até 35% da fibra na composição das peças, mirando o conceito de sustentabilidade como estratégia para agregar valor ao produto e à marca.

“Além de ser ambientalmente segura, a fibra do cânhamo na produção do jeans proporciona às peças uma textura semelhante à do linho, além de torná-lo mais macio a cada uso e lavagem”, declarou Renata Guarniero, gerente de marketing da empresa.

Outras qualidades do cânhamo, como suas propriedades antibacterianas, podem ser usadas como tecnologia em soluções inovadoras, como as calcinhas menstruais da FloYou, que modernizam a forma de pensar o cânhamo têxtil e cujo lançamento, previsto para o fim do mês de julho no Brasil, representa um novo paradigma para a moda íntima e, claro, para a saúde das pessoas que menstruam.

Iniciativas como essas mostram que, apesar de não ser a solução para os problemas da moda, é possível vislumbrar o cânhamo têxtil em uma lógica de compromisso com valores que a indústria precisa urgentemente resgatar.

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#PraTodosVerem: Fotografia, em close, de um emaranhado de fibras de cânhamo em tons de bege, que preenche todo quadro. Imagem: Michael Gaida | Pixabay.

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Sobre Thaís Ritli

Thaís Ritli é jornalista especializada em cannabis e editora-chefe na Smoke Buddies, onde também escreve perfis, crônicas e outras brisas.
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